Uma forma de visualizar as principais mudanças de comportamento nas últimas décadas está em uma cena das mais prosaicas: uma família gaúcha em volta da mesa. Imaginemos um dia qualquer de 1957: 8 de abril. Enquanto os familiares jantam ouvindo o noticiário de rádio sobre a queda de uma aeronave da Varig em Bagé, no dia anterior, podemos adivinhar alguns fatos sobre eles com pouca margem de erro. Quem fez a comida, por exemplo, foi a mãe. Talvez com a ajuda das filhas. Quem bancou a comida? O pai. Quem sabe com a ajuda dos filhos mais velhos, já ingressos no mercado de trabalho. Senão, como ajudantes na lida do campo. Filhos mais velhos, mas nem tanto. Conforme ultrapassavam os 20 anos, aumentava a chance de aqueles filhos e filhas se emanciparem para constituir as próprias famílias.
A idade média dos casamentos nunca parou de aumentar. Em 1974, quando o Registro Civil passou a contabilizar esses dados no Brasil, a idade média dos casamentos no país já era de 27 anos para os homens e de 23 anos para as mulheres – embora 35,5% das noivas daquele ano ainda tivessem entre 15 e 20 anos. Mesmo que os filhos mais velhos saíssem de casa, cadeiras não ficariam vazias em 1957. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na década de 1950 as mulheres tinham em média 6,2 filhos ao longo da vida.
Agora, vamos a uma família de 8 de abril de 2017.
Começamos a desconstruir essa cena de novela em preto e branco pelo número de integrantes. Em declínio desde a década de 1960, o número de filhos já é de 1,9 por casal nesta década. Quem botou comida na mesa? Difícil saber. Em 1991, já 18% dos lares tinham mulheres como chefes de família. Em 2014, segundo o IBGE, já eram 39,8% e seguem em crescimento.
Pai e mãe provavelmente sejam mais velhos. Hoje, eles se casam em média aos 30 anos e elas, aos 28 anos. Pode ainda ser uma família de dois pais ou de duas mulheres, conforme apontam os 15 mil registros de uniões homoafetivas oficializadas no Brasil em quatro anos de vigência da lei. Ainda que mentalizemos o formato mais tradicional possível – pai, mãe e um casal de filhos –, o exercício de imaginação pode ser comprometido, pois essa família talvez não faça as refeições junta. Não literalmente, pelo menos.
Enquanto aumenta o volume da TV para ouvir Donald Trump sobre o bombardeio na Síria, o pai recebe no celular, entre um meme e outro sobre o julgamento mobilizado pelo Inter na Suíça, o áudio do filho adolescente a caminho do cursinho alertando que há sobras de estrogonofe no micro-ondas. A mãe não está em casa. No intervalo do plantão, a médica abocanha um sanduíche enquanto discute no WhatsApp a primeira capa da revista Donna com uma modelo transgênero. No mesmo grupo, a avó posta emojis boquiabertos. Da Europa, que insistiu em conhecer antes dos 30 anos em um mochilão, a filha mais velha rebate dizendo ter mostrado a foto de Valentina Sampaio às irlandesas do bar, e elas não acharam nada demais.
Uma família desintegrada? Muito pelo contrário, segundo Henrique Diaz, diretor de planejamento da Box 1824, empresa de pesquisas de tendência em consumo, comportamento e inovação:
– É a primeira vez que quatro gerações convivem juntas, embora os meios como se dá essa interação fujam àquele tradicional olho no olho. Nas décadas passadas, as pessoas se afastavam. Hoje, aquele primo que você só via no Natal ainda está ao seu alcance, nem que seja por uma foto do bebê recém-nascido dele na timeline. Isso muda inclusive a relação entre pais e filhos. O afeto, que antes só poderia ocorrer naquelas poucas horas do dia juntos, à noite, agora pode ser um vídeo engraçado
enviado no meio da tarde.
Diaz aponta ainda para a horizontalização dessas relações, diferentemente de outrora, em que gerações mais velhas, tendo o conhecimento e os recursos financeiros como principais patrimônios, sempre estavam em um patamar superior aos filhos. Unindo essa antiga hierarquia à submissão social e financeira da mulher ao marido, tínhamos o que Alfredo Jerusalinsky, psicanalista argentino radicado em Porto Alegre, chama de “império do patriarcado”. Eis a grande instituição cujo declínio analisamos em tempo real, segundo o psicanalista. E ele começou mais de uma década antes daquele nosso fatídico ano de 1957.
– A derrocada do patriarcado começa com os 50 milhões de cadáveres da II Guerra Mundial, a imensa maioria deles homens. Foi pela necessidade de sustentar sozinhas milhões de crianças sem pais que as mulheres se emanciparam. Isso gerou um caminho sem volta de avanços para a mulher, como a ocupação do mercado de trabalho e evoluções no campo dos direitos civis e humanos. O homem entrou em depressão, e até hoje ainda tenta resistir e reencontrar o seu papel – avalia o psicanalista.
Livre de se casar jovem e virgem, com a possibilidade de evitar a maternidade se assim desejasse desde o advento da pílula anticoncepcional, a mulher atingiu um novo patamar nessa horizontalização das relações familiares. Mas há outros motivos que levaram diferentes gerações a um pé de igualdade nas dinâmicas domésticas. Jerusalinsky cita três como os principais, nos campos mais diversos. O primeiro deles, o fato de o poder hoje estar mais nas mãos de quem tem a informação do que quem tem a experiência. Conforme a tecnologia permitiu que os filhos soubessem mais do que os pais
sobre determinados assuntos, o filho obteve poder.
Se esse primeiro motivo beneficia os jovens, o segundo é uma contrapartida das gerações grisalhas. Os avanços da ciência, sobretudo na medicina, permitiram aos mais velhos se manterem ativos e produtivos por muito mais tempo. Com a saúde em dia e desafiados a se conservar econômica e afetivamente ativos, os sessentões de hoje ainda chefiam empresas, famílias – algumas delas novas, em relacionamentos que se iniciavam cada vez mais tarde – e relutam em passar o bastão para as gerações seguintes. A ponto de gerar conclusões como a da antropóloga Mirian Goldenberg, autora de A Bela Velhice (Editora Record, 2013).
– É preciso olhar para quem está envelhecendo. Essa geração que hoje está com 60 e poucos é aquela mesma que, nas décadas de 1960 e 1970, fez a revolução sexual. As mulheres dessa geração são aquelas mesmas que foram as primeiras a não casar virgens, a tomar pílula, a ter menos filhos, a trabalhar, a se divorciar… É natural que essas pessoas também envelheçam de um jeito diferente. Essa mulher rejeita a ideia de que, depois de casar e ter filhos, já cumpriu seu papel e deve se aposentar da vida amorosa.
O homem, por sua vez, teve a ajuda da ciência para manter a virilidade e a fertilidade. Costumo dizer
que, se o século 20 foi o da revolução das mulheres, o século 21 é o da revolução dos velhos – compara Mirian.
Por fim, o terceiro motivo apontado por Jerusalinsky volta a empoderar os jovens, e se refere à sexualidade. Quando o sexo se antecipou de vez ao casamento, também deixou automaticamente de ser o portal para o mundo dos adultos. Boa parte das famílias de hoje é composta por filhos e filhas com mais experiências sexuais do que os seus pais. Cada qual com seus novos poderes, as gerações passaram a respeitar cada vez mais umas às outras. Talvez por isso precisemos mais de rótulos e de estudar os meandros de cada geração, bem como seus marcos históricos, a fim de diferenciá-las em algum sentido.
Diaz nos ajuda a defini-las, com o desafio de pintar as siglas norte-americanas que rotulam cada geração com nuances em verde e amarelo.
A geração Baby Boomer, que engloba pessoas nascidas do pós-guerra até meados da década de 1960, de acordo com o pesquisador da Box 1824, foi marcada no Brasil pela busca por cidadania. Eles obtiveram avanços sociais importantes e participaram da luta por direitos civis em um contexto de ditadura militar.
– Também é uma geração que, por aqui, traz muitos traços e valores da imigração europeia e demonstra muito apego às instituições: o governo, a família, a igreja.
O sonho de um jovem adulto dessa geração era ingressar em um bom emprego no setor público. Ela deu lugar à Geração X, uma letra que simboliza rompimento. É um pessoal que rompeu com essas instituições e passou a apostar no próprio potencial de gerar riqueza. Se o sonho antes era ser funcionário público, agora era enriquecer sendo CEO de multinacional – exemplifica Diaz, contrapondo em seguida:
– Só que esse pessoal exagerou na dose. Foi um pessoal que trabalhou demais. Fumou demais. Usou droga demais. Enfartou demais. Adoeceu demais. Assistiu a ídolos morrendo de aids. Então chegou a Geração Y, a dos millennials, nascidos entre 1980 e metade da década de 1990. Esse é um pessoal interessante porque é a geração do “opa, peraí um pouquinho”. O pessoal que conversou mais entre si, que se conectou com o mundo via internet e viu que aquela lógica de vida não fazia sentido. Que não adiantava os pais terem casa na praia mas não suportarem conviver um com o outro, por exemplo.
O que Diaz chama de “opa, peraí”, o sociólogo Dario Caldas chama de “desregulação”:
– A Geração Y é desregulada no sentido de que você não ganha mais de fábrica aquele kit de identidade. Ele não vem dos pais. Tampouco vem de uma banda, ou de um político. Essas pessoas se aproveitaram da internet para ir atrás de características pontuais que as definissem. Um millennial pode ser executivo e ser vegetariano. Ser hippie e ser um empreendedor. Houve um curto circuito de influências nessa busca do individualismo. Também é uma geração que percebeu que não precisa se casar cedo, que não precisa ter um carro, que pode viajar, que pode se experimentar. É a geração da autonomia do sujeito. Por isso ela tem mais ideais do que ídolos, por exemplo – define o diretor do Observatório de Sinais, escritório que conduz pesquisas e análises de tendências de comportamento e consumo desde 2002.
O grande problema, apontam os pesquisadores, é que a Geração Y
questionou o trabalho e o consumismo das anteriores, mas falhou em estabelecer um modelo de sociedade sustentável no lugar. Não apenas por culpa dela. Trata-se de uma geração alvejada em pleno voo por uma crise econômica que se iniciou no final da década passada no Exterior, atingiu o Brasil em cheio em 2014 e ainda não se resolveu. Agora, em torno dos 30 anos, os millennials que antes vivenciavam múltiplas experiências de empreendedorismo, que fizeram o boom do terceiro setor, que trocavam sem pensar duas vezes um bom emprego por um período de autoconhecimento fora, viram-se de volta à cruel realidade do modelo econômico vigente. Até porque o relógio biológico apitou, e os filhos da Geração Y vieram, estejam os pais preparados ou não. Felizmente, os avós se mantêm na ativa para ajudar a segurar o tranco.
Enquanto os millennials lutam contra os boletos, a Geração Zpede passagem. É curioso comparar o que se esperava dela e o que se confirmou. Esperava-se, por exemplo, uma geração com dificuldades para conciliar a falta de maturidade natural da juventude com a hiperexposição das redes sociais. O que se observa hoje é muito mais gente de cabelos brancos passando vergonha nas redes sociais – com opiniões destemperadas, fotos infelizes e outras patacoadas – do que os seus netos.
– O jovem dá o jeito dele, né? Se a perenidade da foto do Facebook é um problema, ele adota uma rede em que ela se apaga imediatamente, como foi o Snapchat. E em seguida outra qualquer. Não existe esse problema do mundo hipercompatilhado para o Z, porque para ele esse já é o mundo propriamente dito. Seria como o peixe se atrapalhar com a água – compara Diaz.
Pesquisadores observam ainda outras características dos Z, como poder de mobilização. Os jovens adultos de hoje também são intransigentes em relação aos valores pleiteados pelos millennials que os antecederam. Questões como responsabilidade social e ambiental de empresas, respeito à diversidade sexual, igualdade de raça e de gênero – a grande bandeira da terceira onda do feminismo, que varreu a década – são vistos como inegociáveis. Mas é uma geração que sinaliza ter o poder de transformar o discurso da Geração Y em ações mais eficientes.
Comparemos, por exemplo, duas manifestações políticas articuladas por essas duas gerações. De um lado, as jornadas de 2013, um grito de insatisfação geral mobilizado pela Geração Y. Do outro, a revolta dos estudantes secundaristas contra a “reorganização” da rede de ensino estadual em São Paulo, em 2015.
A primeira se mostrou acéfala e diversa a ponto de na mesma passeata protestar contra a Copa do Mundo e contra a tomada de três pinos – neste caso, entre a seriedade e o deboche. Ao final do processo, houve muito barulho, muita quebradeira e nenhuma conquista. Já a segunda, mobilizada por adolescentes da Geração Z, coordenou uma ocupação de centenas de escolas em rede, estabeleceu um pauta de reivindicações e ganhou a simpatia da sociedade com ações ordeiras e positivas, como limpar e consertar estabelecimentos e promover oficinas. Terminou dobrando um governador e levando um secretário de Educação a demitir-se.
– Uma aposta minha é de que não demora para a Geração Z, conforme entrar com os dois pés
no mercado de trabalho, mandar na Geração Y. Sobretudo em razão dessa preferência dela pela ação e pela velocidade de mobilização – aposta Diaz.
É curioso falar em velocidade como um trunfo da geração de novos adultos. Há quem aponte a obsessão pela velocidade justamente como um dos grandes problemas da sociedade contemporânea. Que se reflete nos mais diversos âmbitos, como na efemeridade dos relacionamentos, na dificuldade de mudar instituições e na busca por soluções simples para problemas complexos, o que gera ansiedade.
Segundo o psicanalista, a velocidade tem os desdobramentos mais curiosos. Está até mesmo na fala deste entrevistador, que por muitas vezes ouviu o pedido para que repetisse a pergunta (e olha que se trata de um millennial já de uns bons cabelos brancos...). Ela estaria exigindo das pessoas uma otimização desumana do tempo, e não se trata de uma figura de linguagem. O ser humano, na opinião do psicanalista, demora mais para processar determinados sentimentos e problemas. O resultado é uma sociedade cada vez mais medicada. Sem tempo de obedecer à melhor forma como aprende, como trabalha e até como ama, as pessoas estão em busca de diagnósticos que levam a medicamentos que nada mais são do que atalhos. Se não há tempo para o meu processo criativo, que venha o remédio para o déficit de atenção. Se não consigo pegar no sono, que atue o ansiolítico. Se não consigo me exercitar, que eu emagreça com anfetamínicos. Nas relações interpessoais, também há desdobramentos cruéis.
– O amor, por exemplo. O amor demanda tempo. Quem não tem tempo para desperdiçar, não vai ter tempo para se apaixonar por alguém. Uma das características que eu mais observo nos jovens de hoje é que eles têm mais facilidade em lidar com um robô do que com um humano. Quando a pessoa com quem eles estão se relacionando em uma tela de computador se mostra demasiado humano, o instinto deles é desligá-la. Fechá-la como se fosse um robô. Podemos estar assistindo a uma geração renunciando à reciprocidade, à ética e ao prazer – alerta Jerusalinsky.
Dario Caldas, do Observatório de Sinais, nota outro problema na velocidade do nosso dia a dia. Ao mudar muito rápido, a sociedade não consegue mudar consigo as instituições em torno de si. Isso faz com que avanços em questões de valores deixem de se refletir em novas leis ou em novos governantes. Pior. Ainda facilita o inverso. Ao perceberem uma mudança progressista em curso, os partidários do status quo já eleitos agem de antemão para barrá-las. É por isso que movimentos conservadores parecem ressurgir e ganhar força justamente nos momentos em que a sociedade mais debate avanços. Como mecanismos de defesa.
– Se por um lado uma geração sem ídolos é mais consciente no sentido de não comprar ideias prontas, por outro há uma ausência de líderes que é negativa. Porque as instituições não funcionam com a mesma fluidez dessa rede composta nos últimos 20 anos. Elas exigem representantes eleitos. Isso termina acentuando um gap de representatividade. Apressada, a sociedade deixa de formar e alçar um representante político das suas vontades – aponta o sociólogo.
Em meio a esse debate sobre representatividade, poderíamos voltar à mesa daquela nossa família de 2017. A avó da geração Baby Boomer é a única da família com experiência de vida para rebater (ou defender) um argumento em prol do regime militar, mas a neta millennial pode a qualquer momento desmentir a avó pescando em tempo real dados de um site de pesquisa. Já o neto adolescente, um autêntico Geração Z, está menos interessado em debater democracia com a família e mais em eleger a colega como a primeira menina a presidir o Grêmio Estudantil do colégio. Por isso, ele usa seu pouco tempo para assistir aos vídeos da campanha no celular. Em meio a tudo isso, os pais Geração X continuam os grandes provedores financeiros da casa. E, como ainda em muitos bailes quem paga o gaiteiro escolhe a vanera, os demais familiares que parem de brigar, larguem os celulares e aumentem o volume da novela. Bom jantar.
Uma forma de visualizar as principais mudanças de comportamento nas últimas décadas está em uma cena das mais prosaicas: uma família gaúcha em volta da mesa. Imaginemos um dia qualquer de 1957: 8 de abril. Enquanto os familiares jantam ouvindo o noticiário de rádio sobre a queda de uma aeronave da Varig em Bagé, no dia anterior, podemos adivinhar alguns fatos sobre eles com pouca margem de erro. Quem fez a comida, por exemplo, foi a mãe. Talvez com a ajuda das filhas. Quem bancou a comida? O pai. Quem sabe com a ajuda dos filhos mais velhos, já ingressos no mercado de trabalho. Senão, como ajudantes na lida do campo. Filhos mais velhos, mas nem tanto. Conforme ultrapassavam os 20 anos, aumentava a chance de aqueles filhos e filhas se emanciparem para constituir as próprias famílias.
A idade média dos casamentos nunca parou de aumentar. Em 1974, quando o Registro Civil passou a contabilizar esses dados no Brasil, a idade média dos casamentos no país já era de 27 anos para os homens e de 23 anos para as mulheres – embora 35,5% das noivas daquele ano ainda tivessem entre 15 e 20 anos. Mesmo que os filhos mais velhos saíssem de casa, cadeiras não ficariam vazias em 1957. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na década de 1950 as mulheres tinham em média 6,2 filhos ao longo da vida.
Agora, vamos a uma família de 8 de abril de 2017.
Começamos a desconstruir essa cena de novela em preto e branco pelo número de integrantes. Em declínio desde a década de 1960, o número de filhos já é de 1,9 por casal nesta década. Quem botou comida na mesa? Difícil saber. Em 1991, já 18% dos lares tinham mulheres como chefes de família. Em 2014, segundo o IBGE, já eram 39,8% e seguem em crescimento.
Pai e mãe provavelmente sejam mais velhos. Hoje, eles se casam em média aos 30 anos e elas, aos 28 anos. Pode ainda ser uma família de dois pais ou de duas mulheres, conforme apontam os 15 mil registros de uniões homoafetivas oficializadas no Brasil em quatro anos de vigência da lei. Ainda que mentalizemos o formato mais tradicional possível – pai, mãe e um casal de filhos –, o exercício de imaginação pode ser comprometido, pois essa família talvez não faça as refeições junta. Não literalmente, pelo menos.
Enquanto aumenta o volume da TV para ouvir Donald Trump sobre o bombardeio na Síria, o pai recebe no celular, entre um meme e outro sobre o julgamento mobilizado pelo Inter na Suíça, o áudio do filho adolescente a caminho do cursinho alertando que há sobras de estrogonofe no micro-ondas. A mãe não está em casa. No intervalo do plantão, a médica abocanha um sanduíche enquanto discute no WhatsApp a primeira capa da revista Donna com uma modelo transgênero. No mesmo grupo, a avó posta emojis boquiabertos. Da Europa, que insistiu em conhecer antes dos 30 anos em um mochilão, a filha mais velha rebate dizendo ter mostrado a foto de Valentina Sampaio às irlandesas do bar, e elas não acharam nada demais.
Uma família desintegrada? Muito pelo contrário, segundo Henrique Diaz, diretor de planejamento da Box 1824, empresa de pesquisas de tendência em consumo, comportamento e inovação:
– É a primeira vez que quatro gerações convivem juntas, embora os meios como se dá essa interação fujam àquele tradicional olho no olho. Nas décadas passadas, as pessoas se afastavam. Hoje, aquele primo que você só via no Natal ainda está ao seu alcance, nem que seja por uma foto do bebê recém-nascido dele na timeline. Isso muda inclusive a relação entre pais e filhos. O afeto, que antes só poderia ocorrer naquelas poucas horas do dia juntos, à noite, agora pode ser um vídeo engraçado enviado no meio da tarde.
Diaz aponta ainda para a horizontalização dessas relações, diferentemente de outrora, em que gerações mais velhas, tendo o conhecimento e os recursos financeiros como principais patrimônios, sempre estavam em um patamar superior aos filhos. Unindo essa antiga hierarquia à submissão social e financeira da mulher ao marido, tínhamos o que Alfredo Jerusalinsky, psicanalista argentino radicado em Porto Alegre, chama de “império do patriarcado”. Eis a grande instituição cujo declínio analisamos em tempo real, segundo o psicanalista. E ele começou mais de uma década antes daquele nosso fatídico ano de 1957.
– A derrocada do patriarcado começa com os 50 milhões de cadáveres da II Guerra Mundial, a imensa maioria deles homens. Foi pela necessidade de sustentar sozinhas milhões de crianças sem pais que as mulheres se emanciparam. Isso gerou um caminho sem volta de avanços para a mulher, como a ocupação do mercado de trabalho e evoluções no campo dos direitos civis e humanos. O homem entrou em depressão, e até hoje ainda tenta resistir e reencontrar o seu papel – avalia o psicanalista.
Livre de se casar jovem e virgem, com a possibilidade de evitar a maternidade se assim desejasse desde o advento da pílula anticoncepcional, a mulher atingiu um novo patamar nessa horizontalização das relações familiares. Mas há outros motivos que levaram diferentes gerações a um pé de igualdade nas dinâmicas domésticas. Jerusalinsky cita três como os principais, nos campos mais diversos. O primeiro deles, o fato de o poder hoje estar mais nas mãos de quem tem a informação do que quem tem a experiência. Conforme a tecnologia permitiu que os filhos soubessem mais do que os pais sobre determinados assuntos, o filho obteve poder.
Se esse primeiro motivo beneficia os jovens, o segundo é uma contrapartida das gerações grisalhas. Os avanços da ciência, sobretudo na medicina, permitiram aos mais velhos se manterem ativos e produtivos por muito mais tempo. Com a saúde em dia e desafiados a se conservar econômica e afetivamente ativos, os sessentões de hoje ainda chefiam empresas, famílias – algumas delas novas, em relacionamentos que se iniciavam cada vez mais tarde – e relutam em passar o bastão para as gerações seguintes. A ponto de gerar conclusões como a da antropóloga Mirian Goldenberg, autora de A Bela Velhice (Editora Record, 2013).
– As mulheres dessa geração são aquelas mesmas que foram as primeiras a não casar virgens, a tomar pílula, a ter menos filhos, a trabalhar, a se divorciar… É natural que essas pessoas também envelheçam de um jeito diferente. Essa mulher rejeita a ideia de que, depois de casar e ter filhos, já cumpriu seu papel e deve se aposentar da vida amorosa.
O homem, por sua vez, teve a ajuda da ciência para manter a virilidade e a fertilidade. Costumo dizer
que, se o século 20 foi o da revolução das mulheres, o século 21 é o da revolução dos velhos – compara Mirian.
Por fim, o terceiro motivo apontado por Jerusalinsky volta a empoderar os jovens, e se refere à sexualidade. Quando o sexo se antecipou de vez ao casamento, também deixou automaticamente de ser o portal para o mundo dos adultos. Boa parte das famílias de hoje é composta por filhos e filhas com mais experiências sexuais do que os seus pais. Cada qual com seus novos poderes, as gerações passaram a respeitar cada vez mais umas às outras. Talvez por isso precisemos mais de rótulos e de estudar os meandros de cada geração, bem como seus marcos históricos, a fim de diferenciá-las em algum sentido.
Diaz nos ajuda a defini-las, com o desafio de pintar as siglas norte-americanas que rotulam cada geração com nuances em verde e amarelo.
A geração Baby Boomer, que engloba pessoas nascidas do pós-guerra até meados da década de 1960, de acordo com o pesquisador da Box 1824, foi marcada no Brasil pela busca por cidadania. Eles obtiveram avanços sociais importantes e participaram da luta por direitos civis em um contexto de ditadura militar.
– Também é uma geração que, por aqui, traz muitos traços e valores da imigração europeia e demonstra muito apego às instituições: o governo, a família, a igreja.
O sonho de um jovem adulto dessa geração era ingressar em um bom emprego no setor público. Ela deu lugar à Geração X, uma letra que simboliza rompimento. É um pessoal que rompeu com essas instituições e passou a apostar no próprio potencial de gerar riqueza. Se o sonho antes era ser funcionário público, agora era enriquecer sendo CEO de multinacional – exemplifica Diaz, contrapondo em seguida:
– Só que esse pessoal exagerou na dose. Foi um pessoal que trabalhou demais. Fumou demais. Usou droga demais. Enfartou demais. Adoeceu demais. Assistiu a ídolos morrendo de aids. Então chegou a Geração Y, a dos millennials, nascidos entre 1980 e metade da década de 1990. Esse é um pessoal interessante porque é a geração do “opa, peraí um pouquinho”. O pessoal que conversou mais entre si, que se conectou com o mundo via internet e viu que aquela lógica de vida não fazia sentido. Que não adiantava os pais terem casa na praia mas não suportarem conviver um com o outro, por exemplo.
O que Diaz chama de “opa, peraí”, o sociólogo Dario Caldas chama de “desregulação”:
– Ele não vem dos pais. Tampouco vem de uma banda, ou de um político. Essas pessoas se aproveitaram da internet para ir atrás de características pontuais que as definissem. Um millennial pode ser executivo e ser vegetariano. Ser hippie e ser um empreendedor. Houve um curto circuito de influências nessa busca do individualismo. Também é uma geração que percebeu que não precisa se casar cedo, que não precisa ter um carro, que pode viajar, que pode se experimentar. É a geração da autonomia do sujeito. Por isso ela tem mais ideais do que ídolos, por exemplo – define o diretor do Observatório de Sinais, escritório que conduz pesquisas e análises de tendências de comportamento e consumo desde 2002.
O grande problema, apontam os pesquisadores, é que a Geração Y questionou o trabalho e o consumismo das anteriores, mas falhou em estabelecer um modelo de sociedade sustentável no lugar. Não apenas por culpa dela. Trata-se de uma geração alvejada em pleno voo por uma crise econômica que se iniciou no final da década passada no Exterior, atingiu o Brasil em cheio em 2014 e ainda não se resolveu. Agora, em torno dos 30 anos, os millennials que antes vivenciavam múltiplas experiências de empreendedorismo, que fizeram o boom do terceiro setor, que trocavam sem pensar duas vezes um bom emprego por um período de autoconhecimento fora, viram-se de volta à cruel realidade do modelo econômico vigente. Até porque o relógio biológico apitou, e os filhos da Geração Y vieram, estejam os pais preparados ou não. Felizmente, os avós se mantêm na ativa para ajudar a segurar o tranco.
Enquanto os millennials lutam contra os boletos, a Geração Zpede passagem. É curioso comparar o que se esperava dela e o que se confirmou. Esperava-se, por exemplo, uma geração com dificuldades para conciliar a falta de maturidade natural da juventude com a hiperexposição das redes sociais. O que se observa hoje é muito mais gente de cabelos brancos passando vergonha nas redes sociais – com opiniões destemperadas, fotos infelizes e outras patacoadas – do que os seus netos.
– E em seguida outra qualquer. Não existe esse problema do mundo hipercompatilhado para o Z, porque para ele esse já é o mundo propriamente dito. Seria como o peixe se atrapalhar com a água – compara Diaz.
Pesquisadores observam ainda outras características dos Z, como poder de mobilização. Os jovens adultos de hoje também são intransigentes em relação aos valores pleiteados pelos millennials que os antecederam. Questões como responsabilidade social e ambiental de empresas, respeito à diversidade sexual, igualdade de raça e de gênero – a grande bandeira da terceira onda do feminismo, que varreu a década – são vistos como inegociáveis. Mas é uma geração que sinaliza ter o poder de transformar o discurso da Geração Y em ações mais eficientes.
Comparemos, por exemplo, duas manifestações políticas articuladas por essas duas gerações. De um lado, as jornadas de 2013, um grito de insatisfação geral mobilizado pela Geração Y. Do outro, a revolta dos estudantes secundaristas contra a “reorganização” da rede de ensino estadual em São Paulo, em 2015.
A primeira se mostrou acéfala e diversa a ponto de na mesma passeata protestar contra a Copa do Mundo e contra a tomada de três pinos – neste caso, entre a seriedade e o deboche. Ao final do processo, houve muito barulho, muita quebradeira e nenhuma conquista. Já a segunda, mobilizada por adolescentes da Geração Z, coordenou uma ocupação de centenas de escolas em rede, estabeleceu um pauta de reivindicações e ganhou a simpatia da sociedade com ações ordeiras e positivas, como limpar e consertar estabelecimentos e promover oficinas. Terminou dobrando um governador e levando um secretário de Educação a demitir-se.
– Uma aposta minha é de que não demora para a Geração Z, conforme entrar com os dois pés no mercado de trabalho, mandar na Geração Y. Sobretudo em razão dessa preferência dela pela ação e pela velocidade de mobilização – aposta Diaz.
É curioso falar em velocidade como um trunfo da geração de novos adultos. Há quem aponte a obsessão pela velocidade justamente como um dos grandes problemas da sociedade contemporânea. Que se reflete nos mais diversos âmbitos, como na efemeridade dos relacionamentos, na dificuldade de mudar instituições e na busca por soluções simples para problemas complexos, o que gera ansiedade.
Segundo o psicanalista, a velocidade tem os desdobramentos mais curiosos. Está até mesmo na fala deste entrevistador, que por muitas vezes ouviu o pedido para que repetisse a pergunta (e olha que se trata de um millennial já de uns bons cabelos brancos...). Ela estaria exigindo das pessoas uma otimização desumana do tempo, e não se trata de uma figura de linguagem. O ser humano, na opinião do psicanalista, demora mais para processar determinados sentimentos e problemas. O resultado é uma sociedade cada vez mais medicada. Sem tempo de obedecer à melhor forma como aprende, como trabalha e até como ama, as pessoas estão em busca de diagnósticos que levam a medicamentos que nada mais são do que atalhos. Se não há tempo para o meu processo criativo, que venha o remédio para o déficit de atenção. Se não consigo pegar no sono, que atue o ansiolítico. Se não consigo me exercitar, que eu emagreça com anfetamínicos. Nas relações interpessoais, também há desdobramentos cruéis.
– O amor, por exemplo. O amor demanda tempo. Quem não tem tempo para desperdiçar, não vai ter tempo para se apaixonar por alguém. Uma das características que eu mais observo nos jovens de hoje é que eles têm mais facilidade em lidar com um robô do que com um humano. Quando a pessoa com quem eles estão se relacionando em uma tela de computador se mostra demasiado humano, o instinto deles é desligá-la. Fechá-la como se fosse um robô. Podemos estar assistindo a uma geração renunciando à reciprocidade, à ética e ao prazer – alerta Jerusalinsky.
Dario Caldas, do Observatório de Sinais, nota outro problema na velocidade do nosso dia a dia. Ao mudar muito rápido, a sociedade não consegue mudar consigo as instituições em torno de si. Isso faz com que avanços em questões de valores deixem de se refletir em novas leis ou em novos governantes. Pior. Ainda facilita o inverso. Ao perceberem uma mudança progressista em curso, os partidários do status quo já eleitos agem de antemão para barrá-las. É por isso que movimentos conservadores parecem ressurgir e ganhar força justamente nos momentos em que a sociedade mais debate avanços. Como mecanismos de defesa.
– Se por um lado uma geração sem ídolos é mais consciente no sentido de não comprar ideias prontas, por outro há uma ausência de líderes que é negativa. Porque as instituições não funcionam com a mesma fluidez dessa rede composta nos últimos 20 anos. Elas exigem representantes eleitos. Isso termina acentuando um gap de representatividade. Apressada, a sociedade deixa de formar e alçar um representante político das suas vontades – aponta o sociólogo.
Em meio a esse debate sobre representatividade, poderíamos voltar à mesa daquela nossa família de 2017. A avó da geração Baby Boomer é a única da família com experiência de vida para rebater (ou defender) um argumento em prol do regime militar, mas a neta millennial pode a qualquer momento desmentir a avó pescando em tempo real dados de um site de pesquisa. Já o neto adolescente, um autêntico Geração Z, está menos interessado em debater democracia com a família e mais em eleger a colega como a primeira menina a presidir o Grêmio Estudantil do colégio. Por isso, ele usa seu pouco tempo para assistir aos vídeos da campanha no celular. Em meio a tudo isso, os pais Geração X continuam os grandes provedores financeiros da casa. E, como ainda em muitos bailes quem paga o gaiteiro escolhe a vanera, os demais familiares que parem de brigar, larguem os celulares e aumentem o volume da novela. Bom jantar.