Tornou-se comentário recorrente entre os brasileiros que percorrem aquelas que já foram tidas como a sofisticada Calle Florida ou a suntuosa Avenida de Maio. Depois do lamento, vem a frase: "Como Buenos Aires decaiu!" Especialmente na Florida, pedintes, grafites, doleiros e imundície só não desbotam ainda mais o cartão-postal porque estão lá, resistentes, o piso característico, os afrescos das Galerias Pacífico e a aura de sofisticação.
Os números confirmam essa percepção que já flerta com a unanimidade? Sim. E o que está por trás dos números? Quando a análise recai apenas sobre Buenos Aires, as responsabilidades se diluem.
- Ele não gosta de trabalhar, e ela fica brigando pela televisão - lamenta a enfermeira portenha Florencia Marín, 31 anos, referindo-se ao prefeito Mauricio Macri e à presidente Cristina Kirchner, adversários e desafetos.
Sobra para todos, portanto. Quando o país está em questão, a história recente explica: em dezembro de 2001, a Argentina viveu sua mais grave crise econômica. A população, estrangulada pelo corralito (limite a saques bancários), foi às ruas, e se estabeleceu a convulsão social.
Uma década depois, não restam dúvidas de que a economia dita os costumes - a inflação oficial é de 9% ao ano, mas estudos privados mostram a alta de preços beirando os 30%. A evasão de divisas em 2011 atingiu US$ 21,5 bilhões (90% a mais que em 2010).
Na noite da última quinta-feira, a classe média foi às ruas armada de panelas, trazendo lembranças amargas - foram sucessivos panelaços que derrubaram, em 2001, o então presidente Fernando de la Rúa.
A inflação, o controle nas importações e a restrição à compra de dólares mexem no bolso e na alma argentina. Nas mais comezinhas movimentações financeiras, aparece a mão pesada do Estado.
Tão pesada é essa mão, determinada a conter o ímpeto dos indivíduos de proteger suas finanças contra a desconfiança em relação à moeda nacional, o peso, que um "jeitinho argentino" toma forma nas gôndolas dos supermercados.
Contra a medida do governo que obriga os clientes a registrar seus dados caso gastem mais de mil pesos - algo como R$ 450 -, os donos dos estabelecimentos fracionam o recibo, evitando o tal limite. Objetivo: preservar a freguesia e não expô-la ao fisco.
O geólogo porto-alegrense Paulo Stahnke foi a Buenos Aires em agosto. Estivera lá um ano antes. E notou a diferença:
- Tem lixo nas ruas, pichação. Nos restaurantes, preferiam receber em reais. Até parei de fazer câmbio. Um ano atrás, era mais barato. Paguei, agora, R$ 30 só pelo bife de chorizo.
Stahnke não é voz isolada. Patrícia Xavier, consultora da agência de viagens STB, conta que não vendeu sequer um pacote para Buenos Aires em 7 de setembro, algo muito raro. Por outro lado, negociou as viagens de três casais para Montevidéu. A suspeita de Patrícia: pode haver uma tendência de migração dos turistas para o outro lado do Rio da Prata.
- Um pacote para Buenos Aires custava R$ 1 mil por pessoa em 2011. Agora, está em R$ 1,3 mil. Caiu o glamour, há insegurança e preços mais altos - relata.
Som triste nas ruas portenhas
Buenos Aires perde charme devido à mudanças socioeconômicas
Capital argentina enfrenta mudança de hábitos e críticas da população e turistas
Léo Gerchmann
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