Counter-Strike, Rainbow Six, League of Legends, Smite, CrossFire... Talvez você nunca tenha ouvido esses termos ou, se já escutou por aí, não tenha a mínima ideia do que se trata de fato. Mas é fácil de explicar: todos são títulos de jogos eletrônicos que reúnem milhares de aficionados Brasil afora.
Se antes o campo virtual era dominado pelos homens, hoje as mulheres ocupam um espaço de destaque no meio dos jogos digitais. Pelo terceiro ano consecutivo, a Pesquisa Game Brasil (PGB) revelou que elas representam 58,9% dos gamers no país.
– Com o passar do tempo, os jogos se adequaram com títulos mais diversos, que atendem todos os gostos e idades. As mulheres passaram a integrar equipes de desenvolvedoras, de designers, de criação mesmo. Não é tudo pensado para os homens. O próprio marketing era voltado ao público masculino, no estilo das propagandas de cerveja de algum tempo atrás – avalia Marcelo Tavares, CEO da Brasil Game Show (BGS), uma das maiores feiras de games da América Latina.
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Nas primeiras edições da BGS, as mulheres representavam apenas 10% do público. Já na feira de 2017, o índice chegou a 40%, e o evento promoveu um campeonato feminino de Counter-Strike pela primeira vez – neste ano, a BGS rola em outubro, em São Paulo. Esse aumento é reflexo de uma nova geração de mulheres que não está ali acompanhando o namorado ou o irmão, mas de gurias que curtem o universo geek e gostam mesmo é de ter um controle na mão para enfrentar os adversários, explica Marcelo:
– Teve dois preconceitos que sumiram com o tempo: que videogame era coisa de criança e, agora, que videogame era coisa de homem, de menino, do masculino. Tem uma mudança cultural. O console, o computador, foi para o centro da casa. Todo mundo joga junto. E as mulheres vieram com tudo.
Apesar dos números positivos, ainda é raro as mulheres serem maioria em campeonatos de eSports – seja na plateia ou no campo de batalha. No último fim de semana, rolou em Porto Alegre a final da segunda etapa do Campeonato Brasileiro de League of Legends, que lotou o Auditório Araújo Vianna. O público feminino estava presente, mas longe de ser maioria.
Essa lacuna entre os números e a realidade dos eventos competitivos é facilmente justificada na opinião das gamers: a maioria das mulheres ainda prefere jogar em smartphones, abrindo mão das opções com visibilidade, que são jogadas no computador ou em videogames.
– Elas são gamers, com toda a certeza, só que não se aventuram muito na parte de jogos de videogame mais “hardcore”. No Counter-Strike, que é o que eu jogo, não chega a 10%. Na verdade, não são nem metade. Claro que melhorou bastante nos últimos anos, mas o mercado está se adaptando. Ainda temos muitas lutas nessa área, muita coisa difícil. O assédio é o maior desafio – diz Ami Garcia, gamer gaúcha que mora em São Paulo e trabalha como programadora de jogos.
A jovem de 23 anos viu seu hobby de infância se tornar profissão. Ami começou jogando, aos três anos, por influência da família. A paixão se fortaleceu ao longo do tempo e ela chegou a cursar a faculdade de Design de Games, mas não concluiu. Com a mudança para a capital paulista, começou a trabalhar como desenvolvedora, área desbravada a passos lentos pelas mulheres. Também se tornou voluntária na Women Up Games, iniciativa que nasceu há quatro anos como uma rede de apoio para as meninas:
– Damos palestras para mostrar casos de assédio e workshops da parte técnica de desenvolvimento, além de ações com empresas. Fazemos campeonato, temos time de CS. É para dar suporte e incentivar as mulheres no mundo dos games.
Uma das expoentes entre as gamers no Brasil é a carioca Nicolle Merhy. Aos 21 anos, ela é uma das donas da equipe de eSports Black Dragons (BD), que conta com cerca de 60 profissionais. Todos são remunerados e há salários que chegam a R$ 2.500 por mês – em 2017, o mercado de jogos eletrônicos movimentou quase R$ 5 bilhões no país. Conhecida como Cherrygumms, sua alcunha como jogadora, Nicolle entrou no mundo dos games por incentivo do pai. Ao terminar a escola, passou a cogitar a ideia de atuar profissionalmente e, logo depois, entrou para a BD. A partir daí, ganhou visibilidade, fãs e se tornou, além de gestora e gamer, influenciadora digital.
– Nesses últimos três meses, fui para Los Angeles, China e Alemanha, tudo a trabalho. Faço lives, posto vídeo no meu canal todos os dias. E ainda faço faculdade de Direito. O mais complicado de tudo é fazer a gestão do time. Temos uma casa para os jogadores em São Paulo e sempre tenho que ir lá, chego exausta. Tenho salário para pagar, não é brincadeira, é responsabilidade. Vivo do meu canal, que me dá mais retorno, tenho patrocínios. O time de esportes eletrônicos no Brasil ainda está crescendo, mas a questão de influenciadores está consolidada – esclarece Nicolle.
E é justamente no caminho de influencer que a gamer Gabriela Zarembski, 22 anos, pretende apostar. Estudante de Nutrição, a jovem moradora de Canoas entrou para o universo dos jogos eletrônicos no Ensino Médio, por meio da convivência com amigos e do incentivo do namorado. Se apaixonou por League of Legends, jogo de estratégia que segue sendo o seu favorito – ela dedica pelo menos uma hora por dia aos games, tempo precioso que disputa espaço na agenda entre os estudos e o estágio. Gabriela já participou de campeonatos, mas se encontrou mesmo nas transmissões ao vivo nas redes sociais. Enquanto joga, compartilha dicas e troca mensagens com a audiência.
– Percebi que havia poucas meninas que faziam sucesso, que jogavam e falavam sobre o assunto. Isso me motivou a incentivar outras gurias. O jogo abre portas para fazer novas amizades, te aproxima das pessoas. Sempre tive dificuldade, e os games me ajudaram muito a criar laços – conta Gabriela, relembrando também a dificuldade dos pais em enxergar os jogos como ferramentas que vão além da simples diversão:
– Dos meus pais nunca tive muito apoio. Acho que não é da cultura deles, da geração. Agora eles aceitam, mas não entendem ainda.
Luta contra machismo e assédio
As gamers Ami, Nicolle e Gabriela podem ter trajetórias diferentes no universo dos jogos digitais, mas todas compartilham de uma mesma bandeira: a luta contra o machismo e o assédio. Elas têm histórias tristes para contar. Ami já trocou seu apelido de jogo para nomes masculinos diversas vezes a fim de evitar investidas. Hoje, confessa que não é mais adepta dessa prática:
– Vi que o problema não era meu e passei a deixar meu nickname feminino. Percebi que quem tinha que mudar não era eu. O mais difícil é o assédio, tu é vista como uma intrusa nesse mundo. Os homens te xingam por achar que tu não deveria estar naquele lugar. Tu pode jogar melhor ou pior, mas o jeito que tu joga não vai ser o motivo do xingamento, mas sim por ser mulher. Todo dia que entro para jogar sofro assédio do time oposto. Pedem WhatsApp e nudes, ou chegam mandando voltar para a cozinha.
Gabriela, por exemplo, já perdeu as contas de quantas vezes foi ofendida durante os jogos. A estudante define o universo dos games como “tóxico”:
– Lidei com o machismo em vários momentos e é muito frustante. Tu não tem reação, não sabe como lidar no início. Tu está ali para se divertir, algo que tu faz para se sentir melhor, e precisa passar por isso. Por verem meu nick feminino, me ofendem. Acho que está melhor do que já foi, mas ainda é terrível.
Já Nicolle acredita que a fama ajudou a diminuir os xingamentos diários, porém, o machismo velado ainda impera. É raro alguém cogitar a hipótese de que ela é a dona do time:
– É o preconceito em silêncio. Você chega em um lugar cheio de homens e eles te olham com uma cara de: “Você veio aqui acompanhando alguém?”. Ou, como já aconteceu várias vezes comigo em campeonatos internacionais, você chega e as pessoas perguntam: "Você é social media do time"? Acho que muitas vezes não é por maldade. Está tão dentro da sociedade que sai. Hoje, não sofro preconceito escancarado.
Para ajudar a combater o machismo, a organização americana Wonder Women Tech, em parceria com a Women Up Games e a Boot Kamp, lançou a campanha #MyGameMyName neste ano para conscientizar os jogadores sobre o assédio sofrido por mulheres nos games. Homens trocaram seus nomes de jogo por versões femininas e sentiram na pele o preconceito.
– Precisamos falar diretamente para os homens porque o machismo é praticado por eles. Temos que falar o que passamos, precisamos ser ouvidas. Eles precisam perceber que têm que mudar de atitude. Foi isso que o #MyGameMyName fez. Eles podem nos ajudar a aumentar a nossa voz. É um processo, é uma iniciativa muito bonita – ressalta Nicolle, que participou da campanha.
No site do projeto, é possível ouvir outros depoimentos de meninas que encaram o machismo de frente no mundo dos games todos os dias. Ainda há muita luta pela frente.