Há pouco mais de um mês, desde que cheguei aqui em Punta del Este, no Uruguai, incorporei alguns hábitos simples, básicos e felizes à minha rotina. Ando de bicicleta pela cidade, corro na península ouvindo música no smartphone, passeio com meus cachorros de manhã, à tarde e à noite, frequento a pé as sorveterias Freddo e Arlecchino para o prazer de saborear duas bolas de sorvete de sobremesa após o jantar, entro e saio de carro da garagem sem sobressaltos… Enfim, vivo uma vida digna de cidadã.
CORTA!
Da última vez que saí de bicicleta em Porto Alegre, tinha como destino o Mercado Público. Era sábado e queria apenas aproveitar o lindo dia para uma pedalada até o Centro e o prazer de sentar à mesa do restaurante Gambrinu’s. Passei a metade do percurso fugindo de um potencial assaltante que viu em mim uma presa fácil. Terminei o passeio sem chegar ao destino, com a bicicleta embaixo do braço, refugiada dentro da Estação Rodoviária e pedindo socorro ao meu marido pelo telefone. Sim, o assaltante seguia à espreita, de língua de fora feito cachorro na frente daqueles fornos de frango de padaria.
CORTA!
Da última vez que resolvi responder à mensagem de texto de um WhatsApp, também era sábado, por volta de meio dia, e eu caminhava na Rua 24 de Outubro, em Porto Alegre. De repente, senti um bafo na nuca. Nem cheguei a virar o pescoço para trás. Bastou um rápido olhar de soslaio para a direita para perceber o iminente roubo que um sujeito de boné e não mais de 20 anos de idade preparava para cima de mim. Por sorte, estava justamente naquele momento em frente ao prédio da minha irmã. Fui mais rápida. Caí rapidamente para a esquerda e pedi ao porteiro que, por favor, abrisse logo a porta. Na recepção, sentei à espera de que o sujeito fosse embora. Na frente do prédio ele ficou por mais de 20 minutos até que eu tive a ideia de pedir ao mesmo porteiro que abrisse a garagem do edifício, localizada na rua lateral, e por lá eu saí em disparada feito criminosa.
CORTA!
Da última vez que meu marido e eu não olhamos simultaneamente pelos três retrovisores do carro ao entrar na garagem de casa, em Porto Alegre, sempre com o coração na boca, fomos surpreendidos por dois homens armados que chutaram, bateram no meu marido e ordenaram que eu entrasse no banco de trás para me levar para algum lugar e fazer comigo sei lá o quê. Meu marido disse que eu não entraria, e a única alternativa que tivemos foi sair correndo para dentro do prédio, infringindo as instruções daqueles dois delinquentes, que poderiam facilmente ter dado fim às nossas vidas com dois tiros covardes pelas costas não fosse a luz do edifício espocar na cara deles.
NA HORA CERTA!
A mãe que vai buscar o filho na escola é assassinada com tiros à queima-roupa, a dona de cachorro que sai para passear tem o animalzinho de estimação arrancado dos braços, o pai que entra no posto de conveniência com os filhos pequenos para comprar pão é surpreendido por uma gangue armada até os dentes, o empresário que sai para pedalar após o expediente não volta para casa. É morto a facadas. “Tu é louca de caminhar na rua digitando no celular”, disse uma amiga no episódio da Rua 24 de Outubro.
HÃ??!!
A LOUCA SOU EU??!!
Estou privada de falar no celular enquanto passeio em uma via pública, estou impedida de pedalar minha bicicleta sob pena de ser esfaqueada, tenho síndrome do pânico cada vez que abro a garagem de casa para entrar com o carro, deixei de curtir o passeio matinal com meus cachorros com medo de sequestro animal e, depois das 9h da noite, eu que não seja imbecil de cruzar as grades do edifício para ir até a esquina comer um sorvete. Afinal de contas, se algo me acontecer, a culpa é minha. Quem mandou sair de casa numa hora dessas?
QUIETINHA AÍ!
Dia desses, assistia a uma entrevista com José Padilha, diretor de Tropa de Elite e de uma futura série obre a Operação Lava-Jato, quando ele resolveu falar pela primeira vez sobre o porquê de ter deixado o Rio de Janeiro e levado a família embora para Los Angeles. Vítima de uma tentativa de sequestro, foi imediatamente aconselhado a andar cercado de seguranças. Não só ele, como a mulher e os filhos. O que fez? Preferiu dar um adeus para o Brasil, partir para bem longe e ganhar a liberdade de volta.
CERTÍSSIMO, PADILHA!
Uma frase dita por Zé Padilha sintetizou magistralmente tudo o que está se passando conosco, vítimas deste país corrompido, marginal, que furta de todos nós, diariamente, o direito básico de ir e vir com segurança. Falou Padilha: “O brasileiro perdeu a sensibilidade para o absurdo”.
ESCUTARAM?
“O brasileiro perdeu a sensibilidade para o absurdo”.
Esta temporada de liberdade a qualquer hora do dia ou da noite que tenho desfrutado aqui no Uruguai e em qualquer país com o mínimo de decência só me abriu ainda mais os olhos para esta sensibilidade para o absurdo que andava perdendo. É a falta dela que vai nos matar enquanto cidadãos de bem. É dela que precisamos para não achar todo este disparate normal. Não é normal. Nunca foi normal – e nossa sensibilidade para o absurdo jamais permitirá que seja normal. Que não a percamos, pois.