Numa noite de insônia, o que é bem frequente, comecei a lembrar de pessoas que conheci ao longo dos meus 50 anos e que, por algum motivo, se tornaram inesquecíveis. Muitas já morreram, mas mesmo essas renderiam boas histórias. Uma dessas pessoas é Dona Orfila, diretora de um colégio onde eu estudava quando menina. Seca de carnes e de alma, ela dirigia a escola com mão de ferro. Jamais a vimos dar um sorrisinho sequer. Sempre séria, quando não carrancuda. Parecia que levava o mundo em suas costas. Ela detestava qualquer data festiva. Dia do Professor, então, ela odiava, porque as colegas faziam festinha na "hora do recreio", e ela achava que isso era uma grande perda de tempo. Ela nunca sentou com as colegas para comer um pedaço de bolo.
Na cidade, comentava- se que Dona Orfila nunca quis casar porque, filha única, teria que cuidar dos pais quando eles ficassem velhos e achava que não ia conseguir dar conta de cuidar da escola, marido, filhos e dos pais também.
Depois que os pais morreram, a diretora praticamente se mudou para a escola, que era seu trabalho e seu lazer. Nunca aceitou que alguém a ajudasse nas funções da secretaria - que eram muitas, pois naquela época, bem antes da chegada dos computadores, tudo era feito à mão ou à máquina de escrever, das fichas dos alunos às provas de todas as turmas. Depois, para tirar cópias, as folhas eram passadas num tal de mimeógrafo... Quem ainda lembra disso? A diretora tomava conta de tudo sozinha, e ainda achava um tempinho para ir nos vigiar no pátio, na hora do recreio.
A única outra atividade da diretora era assistir aos cultos e reuniões da sua igreja, três ou quatro vezes por semana. Era, enfim, um modelo de autossuficiência, caráter, compostura e virtude, diziam os mais velhos.
Nós, crianças, tínhamos outra opinião: era braba, antipática e mandona, uma pessoa que dava medo. Uma pessoa triste e de mal com o mundo.
Passou-se muito tempo desde então. Um dia, alguém contou que ela havia morrido ( eu já estava na faculdade), debruçada em sua mesa de trabalho, em plena véspera de Natal. Quem a encontrou foi o vigia noturno da escola, que estranhou as luzes acesas e a janela aberta na secretaria. Impossível imaginar outro fim para ela. Que coisa triste!
Dona Orfila havia doado em vida seus bens para a igreja - a casa e um terreninho. Quando o pastor foi conhecer a casa e tomar posse do que lhe pertencia, levou como testemunhas um policial e um oficial de Justiça. Retiraram os móveis e as poucas roupas para doar aos pobres da igreja. No armário, caixas e mais caixas cheias de papéis, cartas antigas e recortes de jornal. E aí, a surpresa: dentro da caixa maior, bem enrolada no casaco marrom de todos os invernos, havia uma coleção de revistas eróticas. Para ver como são as coisas... Até Dona Orfila tinha outra por dentro. Quem diria!
Viviane Bevilacqua: A Surpresa
Viviane Bevilacqua
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