Acabei de ler o ótimo A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, uma novela com personagens bem construídos, histórias dramáticas contadas com uma ironia deliciosa e que nos apresenta um interessante painel de como as mulheres viviam nos anos 40, quando não tinham acesso à vida pública, mantendo-se privadas de trabalhar, de dar opiniões e de relacionarem-se com liberdade. Do livro, saltei para a versão 2016 do programa TV Mulher, com Marília Gabriela e convidados debatendo sexualidade, violência doméstica e demais assuntos que abastecem a nova revolução feminista que anda em curso.
Da invisibilidade retratada no livro de Martha ao protagonismo da mulher do século 21 são quase 80 anos de conquistas valiosas e definitivas, e segue o baile, pois ainda há muito a falar sobre a cultura do estupro, a descriminalização do aborto, maior representatividade política, equiparação salarial e demais questões que visam dar à mulher um respaldo integral, e não parcial.
Cada uma se engaja a seu modo. Algumas levantam bandeiras e saem às ruas. Outras são discretas, porém donas do seu desejo, o que as torna aliadas da causa sendo simplesmente quem são. Em tese, somos todos a favor do empoderamento feminino, mas quando o assunto sai da esfera civil e profissional para entrar na esfera amorosa, radicalismos geram desconfortos que poucos comentam para não serem chamados de retrógrados. O fato é que as relações são feitas também de subjetividade, o que inclui o jogo da sedução. Abrir mão desse jogo é reduzir a graça de viver. Sedução implica a existência de um predador e uma vítima, duas palavras associadas à violência, mas não neste caso.
O homem conduz a mulher na dança. O homem abre a porta do carro pra ela. Caminha do lado de fora da calçada em sinal de proteção. Não vou falar sobre quem paga a conta, pois dinheiro é assunto concreto e falo aqui de algo abstrato: a atmosfera forjada que alimenta a fantasia para a sedução se manter. Casais homoafetivos incluídos, claro. Um toma conta ("o predador") e o outro se submete ("a vítima"), podendo-se inverter os papéis a qualquer momento. Um arranjo assimétrico que não oferece prejuízo para o avanço da sociedade. Ninguém é dono de ninguém, ninguém deve obediência ao outro, já demos adeus à hierarquia, não estamos mais nos anos 40, mas, se extinguirmos certas performances que nos conectam com nossa natureza animal, de onde extrair alguma palpitação? A dama e o cavalheiro podem, claro, interromper a orquestra a fim de discutirem juntos para que lado seguir, mas, uma vez de acordo, é preciso continuar a dança, e sempre haverá um que conduz. Não é preciso lutar inclusive contra isso. É de mentirinha. Como o teatro. Afinal, o amor também é uma arte.