Um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea, João Gilberto Noll teve sua morte confirmada na manhã desta quarta-feira, deixando um legado que vai além dos números e dos prêmios: múltiplo e incomum, o autor gaúcho não se sentia parte de grupos ou correntes e ficou conhecido pelo seu trabalho singular com a linguagem, que tenta apreender imagens e narrativas em fluxo de consciência, mas trabalhadas de modo poético e musical.
Em sua carreira de mais de 30 anos, Noll contabilizou cinco prêmios Jabuti e 18 livros publicados – 13 romances, três livros de contos e duas experiências voltadas para o público infantojuvenil. Entre os principais livros estão O Cego e a Dançarina, Harmada e Hotel Atlântico, que chegou a virar filme. Seis minicontos (um dos formatos que agradavam o autor e eram publicados por ele no suplemente Ilustrada, da Folha de S. Paulo, entre 1998 e 2001) do livro Mínimos, Múltiplos, Comuns, lançado em 2003 e reeditado em 2015, foram liberados pela editora Record e ajudam a entender o estilo que marcou a obra de João Gilberto Noll. Confira abaixo:
Vertente
Tanta gente esperando o resultado. Sentia-se bem ali, entre tantos. Foi até o rio. Enquanto não ouvisse o megafone com a novidade, poderia ficar junto com os mais calmos, pés na orla. "Tanta gente", ouvia todos repetindo, menos ele, que preferia pensar baixinho, seguindo como se sentisse umas cócegas no pensamento, embora só aceitasse essa surdina cálida no meio de outras vozes, como ali. Quando anunciaram o nome, engoliu o merecimento. Aproximou-se então – devagar. Sempre cultivara a convicção de que seria o escolhido por uma razão que justamente agora começava a lhe fugir. Via que não era mais o mesmo que aprendera a reconhecer. Sentiu a virilha molhada. Notou que toda a sua massa se diluía pelos poros. O corpo, ah, se desdobrava em córrego...
Natureza
Era de manhã, sem aflição. Ele desconfiou. Será que não estava entendendo ou um alguém que costumava lhe ditar secretamente as normas do dia ainda não tinha saído da pasmaceira noturna? Quis pegar a cortina. A mão caiu, fugiu-lhe o tecido. Tudo parecia vir de uma sintonia líquida, e não daquela solidez que o conduzia por horas, sem descanso. Não, ele não queria telefonar para ninguém, não precisava sair para comprar o que quer que fosse. Teria que aprender como continuar ali e assim. Se fingisse uma fuga? Mas temia o quê? Que esse bem-estar matutino terminasse e ele tivesse que optar por outra coisa que não pudesse nem ao menos se esboçar? Ele teria mesmo de aceitar isso que lhe vinha agora, já. E engoliu uma quase, quase marola – de ar...
Porto
"Corri, corri para te pegar." Recuas, esfregas o casaco, como se retirasses meu pó. Mas mal toquei na tua manga, só um roçar, como quem diz "ainda estou aqui; não morri, não". Lembro que ventou, o vento que aparece sempre aqui no sul, quando algo está para se dar. De preferência numa esquina como aquela, a sarjeta meio alagada, crespa, com um laivo de cais. E se duas pessoas se encontram sem nada mais para dizer. Ventava, como se existisse uma conjunção de forças, maior. Sacudiste mais uma vez o casaco. Encenação de segunda... Um carro estacionava rente ao pífio drama. O recreio estridente na escola, logo ali. Tu abrindo a porta do carro recém-estacionado. Abaixo-me. Olho as mãos firmes no volante. Brancas, quase transparentes, a bem dizer, só ossos. São elas que te levarão...
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Primavera
Chegamos os dois ao mesmo tempo. Dúvidas... É, existem quando duas pessoas vão viajar juntas sem se conhecer de fato. Dias atrás, uma explosão no terreno ao lado da rodoviária. O capinzal queimado. Policiais rondando. Meu parceiro de viagem falou que ia comprar uma revista, já voltava. A luz de outubro relutava em abandonar o estacionamento em frente. Horário de verão... Vi de súbito que ele bebia guaraná sobre a revista aberta num balcão. Parecia um bom sujeito. Que eu expirasse ali, assim, minhas últimas suspeitas...
Bucólicas
Pôs-se a correr, cabelos esvoaçantes feito um estandarte de si mesma, pouco importando os trovões sobre a cabeça, pouco importando o risco de um raio liquidá-la de uma vez por todas. Com qualquer tempo seguiria por ruas em direção nenhuma. Ou talvez não, quem sabe pararia como fazia de fato nesse instante em que o sol voltava com mais ímpeto. Pararia ali e não em qualquer outro local como se poderia imaginar –pois tem sempre alguém na esperança de lugares menos baldios do que aquele, onde se destaca uma égua pangaré no meio dos juncos à beira do canal. É ali que ela para, abraçando-se ao pescoço faiscante do animal, que se "incendeia, sim, e com a cidade inteira" – ela grita entre buzinas e blasfêmias, sentindo-se em chamas, triunfante!
Calor
Se despontasse um destino claro entre os três, que fim dariam àquela atmosfera viciosamente imprecisa? Por enquanto, tateavam por entre os escombros de uma obra parada havia muito, no fundo do balneário, pertodas dunas, quase sem se olhar – por vezes, um toque involuntário, como se apatetados pela avidez da estação. Eles não eram adultos. Tinham corpos maiores do que podiam conter. Sempre prontos para o gesto que jamais se desatava. Pulsavam, pulsavam numa espécie de detenção encantada, apenados que estavam num vago, vago refrigério... Até que um deles deu-se conta de que esquecera o filtro solar. O que faria com as sardas? Os dois outros corpos, bem morenos, prontamente responderam. Aproximaram-se. Muito. Seriam o seu escudo contra o sol.