Por Abrão Slavutzky
Psicanalista e escritor
As pessoas buscam conhecer as odisseias para entender mais da vida, de si mesmas. Por isso perguntam aos chamados “sobreviventes dos Andes”, que resistiram após a queda de um avião, em 1972, não só sobre o que ocorreu nas montanhas. Com o tempo, a maioria das questões é sobre o que aprenderam e o que mudou neles.
Tintim Vizintin, um desses sobreviventes, afirmou que o grupo foi transformado em lutador, eliminou qualquer atitude de resignação. Pensa que uns se deram melhor na vida do que outros, mas todos têm um denominador comum: são lutadores, não se dobram. Todos são combativos, vão em frente mesmo quando terão que perder. Escreveram no avião: “Amigos para toda eternidade”. Ele se sente amigo para sempre dos sobreviventes e dos que morreram.
Tintim integrou o grupo dos expedicionários com Roberto e Parrado, no dia 12 de dezembro daquele ano, quando saíram em busca de ajuda. Foram 10 dias caminhando com a morte. Dormiram em meio a uma montanha de 5 mil metros e temperatura, à noite, de -30ºC. Seus preparativos foram de amadores muito astutos.
O filme A Sociedade da Neve reproduz o acidente do dia 13 de outubro de 1972. Transporta os espectadores ao local real do acidente, nas montanhas onde os jovens uruguaios viveram 72 dias. Já o livro com o mesmo título, em que o filme se baseou, foi escrito pelo jornalista uruguaio Pablo Vierci, entre 2005 e 2008. Ele lutou para se convencer que deveria escrever e convencer todos os sobreviventes a falarem. É o livro mais completo, entre tantos já publicados, onde convivem histórias dos Andes, mas também do tempo em que os jovens construíram famílias e profissões.
Já tinha estudado Milagre nos Andes, livro de Nando Parrado. Perguntei-me – por que um analista está sempre perguntando – como Nando se transformou em líder. Foi a partir da morte de sua irmã e da ideia fixa de ver seu pai, semelhante ao que ocorreu na Odisseia de Homero. No início dessa obra, Telêmaco, filho de Ulisses, estava desnorteado, sem rumo, e a deusa Atenas disse a ele que saísse em busca de seu pai. Em ambas as situações havia que ir atrás do pai, ir atrás de um norte para quem estava desnorteado. No avião viajavam a mãe e a irmã menor de Nando. A mãe morreu na queda e a irmã sobreviveu dois dias ao seu lado.
No livro, Nando diz: “Minha irmã querida morreu nos meus braços. Foi aí que o foco do meu pensamento mudou, percebi que estávamos numa situação sem saída e pensei: é preciso sair daqui. A semente da fuga foi plantada no mesmo instante em que minha irmã morreu”.
A morte de uma irmã querida é traumática, e então recordei a morte de uma irmã que vivia em Israel, que ocorreu pouco antes da derrubada das Torres Gêmeas de Nova York. As tragédias me sacudiram, e não passou muito tempo comecei a me interessar pelos sobreviventes dos Andes. Ver o filme e, principalmente, ler o livro é uma experiência de vida. São histórias de incríveis desafios. É conviver com seres humanos que aprenderam a ser solidários. A importância de amar os demais é essencial. Um grupo unido, com coragem, para enfrentar o medo da morte sempre. Aliás, o medo e a coragem são duas faces da mesma moeda.
Fiquei emocionado, no filme, com as palavras de Numa Turcatti, em 11 de dezembro de 1972. Palavras de gratidão a um grupo fraterno, palavras de letras corajosas, enfrentando a morte. Há muita curiosidade sobre como o grupo enfrentou os riscos constantes: após a queda, com muitas mortes, veio uma avalanche – e mais mortos. Eles aprenderam a se encorajar e nunca se resignar: essa foi a sabedoria chave para superar tantos perigos. Logo entenderam, por exemplo, que nas montanhas não convinha chorar, pois não se podia perder o sal pelas lágrimas. Foi imperioso se alimentar de carne humana, não havia mais nada, e com o tempo todos entenderam essa lição primitiva de humanidade. Dormiam abraçados e se massageavam devido ao frio congelante, e assim se aqueciam física e afetivamente. Foi o caminho para se salvarem.
O filme e o livro A Sociedade da Neve contêm histórias que aquecem os corações, despertam o sentimento do espetáculo que são as amizades. No Museu da Sociedade da Neve, em Montevidéu, pode-se ver nas paredes algumas das palavras essenciais para o grupo dos Andes: Atitude, Amor, Fé, Disciplina, Vida. Cinco palavras sobre as quais podemos pensar e conversar, pois um dia as conversas voltarão a ser essenciais.
Em seu depoimento, Nando Parrado, o líder dos expedicionários, diz: “Nunca fomos pessoas melhores do que quando estávamos nos Andes. Ali não havia interferência externa, não havia dinheiro, não havia intolerância, não havia hipocrisia”. O mundo se interessa pela história também para se reconciliar consigo mesmo. No pior dos desamparos, um grupo construiu uma sociedade, uma utopia, a sociedade da neve.