Se você prestar atenção no mapa do sudoeste da França, vai notar o espaço vazio a oeste de Toulouse, onde os nomes ficam mais escassos e as linhas de trem e rodovias se desviam, como se fossem um riacho fluindo à volta de uma pedra. Esse "buraco" é a Gasconha, uma das regiões mais rurais daquele país. Os gascões, na maioria, têm orgulho de sua província, e muitos desenvolveram o hábito curioso de descrever sua terra bucólica em termos de tudo o que ela não possui: cidades grandes, turismo de massa, trânsito, estresse urbano, serviço de trens de alta velocidade, autoestradas, imóveis de preços estratosféricos, hordas de parisienses tomando conta das casas de veraneio e por aí vai. Eu passei quase um ano inteiro ali reunindo material para um livro de memórias culinárias e posso confirmar a ausência de todas essas coisas.
Às vezes, a Gasconha é chamada de "o outro sul da França" pelos exagerados de plantão, conscientes da imensa popularidade da Provença e da Côte d'Azur, a 400 km a leste. E, com certeza, se você se sentar no "terrasse" de um restaurante da praça principal de Auch, a capital histórica da região, no fim de setembro, por exemplo, dá quase para acreditar que está na França mediterrânea, graças às tamareiras e o povo bonito bebericando vinho rosé e falando com o sotaque animadinho do Midi.
Mas aí seu prato chega e a impressão desaparece mais rápido que um copo de pastis gelado em um dia quente de verão, pois a culinária gascã é mais substanciosa que a gastronomia ensolarada da Provença. Na verdade, é desafiadora e descaradamente forte. A gordura de pato, e não o azeite de oliva, é a moeda local. Tudo é cozido nela: batatas, linguiças, ovos e – no caso do confit, o pilar da cozinha rústica local, o próprio pato. Os gascões consomem foie gras, feito nas fazendas de toda a região, com regularidade casual e consideram a iguaria tão banal quanto a costelinha suína.
O Gers não é muito grande, mas dá espaço para os viajantes respirarem. Somente 840 mil turistas estiveram no département em 2015. (Só para comparar, onze milhões visitaram os Alpes Marítimos, região que inclui Nice e Cannes.) E embora não seja o distrito menos populoso do país, é o mais agrícola, com uma parcela maior de suas terras cultivadas do que qualquer outro. O número de pessoas em Gers perde feio para o de animais de criação, principalmente os patos.
Outro fato interessante: os humanos que moram ali vivem um tempão. A região administrativa que inclui Gers tem uma das taxas de expectativa de vida mais altas, sendo que seus residentes têm menos ataques cardíacos que quase todo o resto da nação.
Esses dois fatos são recebidos com incredulidade pelos visitantes quando são apresentados à culinária local. Tanto que é melhor ser explorada aos poucos, quem sabe começando pelo Hôtel de France, em Auch, um estabelecimento antigo e imponente na praça principal que recentemente ganhou reforma geral. Seu cardápio inclui os pratos básicos: magret assado, confit de pato com feijão branco, uma salada recoberta com fatias de carne de pato curada e confit de miúdos de pato, uma terrina de foie gras.
O vinho que deve acompanhar essas opções, sem sombra de dúvida, é o Madiran, escuro, tânico, com gosto de terra e ameixas cozidas. Com a sobremesa, um Pacherenc de colheita tardia, a versão branca do Madiran, um vinho doce de complexidade e estrutura semelhantes ao Sauternes. Para fechar a refeição, uma amostra de Armagnac, o conhaque de uva envelhecido em barris e, talvez, um tequinho de chocolate.
Os tesouros patrimoniais da região quase todos estão escondidos, como se aguardassem a hora certa de se exibir. Como a catedral de Auch, por exemplo: na mesma rua que o Hôtel de France, a Cathédrale Ste.-Marie, do século XVI, é um espécime bastante refinado, com seus belos campanários gêmeos e os vitrais restaurados, mas a pièce de résistance se vê escondida na área restrita do coral, com teto abobadado, aonde se chega através de uma porta interna que admite visitantes pelo preço de 2 euros (US$2,12).
A maioria das outras atrações de Gers com selo de aprovação dos guias de viagem – e restaurantes turísticos, que são poucos – está concentrada ao norte da capital, ao longo de uma trilha bem conhecida entre o vilarejo pitoresco de encosta chamado Lectoure e a aldeia murada de Fourcès. A rota também inclui o bastião medieval popular de Larressingle e a clausura imponente do século XIV, em La Romieu, além da aldeia próspera de Montréal du Gers, onde, em um restaurante convidativo chamado L'escale, você pode saborear uma bela refeição ao ar livre, com direito a capão assado em molho de foie gras e cogumelo morel, sentado sob as arcadas graciosas da praça da cidade.
Lectoure é o típico vilarejo francês arrumadinho e embelezado – e nesse aspecto, é uma anomalia em Gers. As principais cidades da Gasconha são, quase todas, pouco atraentes, na maioria centros comerciais inóspitos que oferecem pouco ao turista. Apesar disso, garantem ao forasteiro mais paciente e curioso a oportunidade de se enquadrar nos ritmos de um estilo de vida rural que está desaparecendo no resto da França. Passar uma manhã inteira na feira livre de Fleurance, Mirande ou Nogaro é testemunhar a "francesidade" à moda antiga em sua versão mais pura, ou seja, uma afirmação coletiva de tudo o que os franceses consideram mais sagrado: fraternité, gastronomie e, em uma escala menor, bebida alcoólica logo de manhã, cigarros e beijos nas bochechas.
Vale muito conferir a feira das segundas de Mirande. Realizada em um espaço coberto, o marché enche essa cidadezinha sombria de 3.500 almas de vida e energia. O clima é semelhante ao de uma pequena feira rural, só que com uma comida muito superior. Um giro ligeiro pelas barraquinhas equivale a um curso relâmpago sobre a gastronomia gascã: confit de coxas de pato aninhadas em fígados da ave, gordos e escuros; rillettes de ganso e porco, pâté de tête, chouriço basco, rodas imensas de queijo Tommes des Pyrénées, com toque cítrico, truta fresca, todos os tipos de nozes e frutas desidratadas, morango gariguette, ameixas e uma infinidade de outras delícias.
A busca por provisões sempre acaba com um almoço. Praticamente todas as cidadezinhas da região têm uma casa ao lado da feira, lotada, cujas ofertas são anunciadas em uma lousa na entrada. A de Mirande é chamada, muito prosaicamente, de Le Grand Café Glacier. Em minha visita mais recente, uma costela de porco assada no vinho, acompanhada de vagens e um gratin dauphinois me custou oito 8 euros; a meia garrafa do vinho tinto da casa custou um pouquinho mais.
A Gasconha é basicamente uma área rural e para entender sua verdadeira essência é preciso deixar as cidades para trás e se aventurar no interiorzão, de preferência a pé – coisa fácil, já que Gers é cortada por milhares de quilômetros de estradas e trilhas perfeitamente caminháveis, tornando o passeio de uma vila a outra uma proposta totalmente possível. Sem contar que, na minha opinião, a melhor forma possível de abrir o apetite.
Os franceses dividem as caminhadas em duas categorias: grandes randonnées e petites randonnées, sendo a primeira para o tipo de pessoa que acha supernormal carregar uma mochila de 23 kg montanha acima e sabe discorrer a respeito das propriedades de vários tecidos sintéticos. A segunda é para lerdos como eu, que ficam todos apavorados quando uma atividade externa começa a invadir o meu horário do jantar.
Percorri muitas rotas de petite randonnée em Gers, usando o maravilhosamente detalhado TopoGuides, publicado pela Fédération Française de la Randonnée Pédestre; caminhando com a minha filha, levei o fininho, mas excelente guia "Les Sentiers d'Emilie dans le Gers". A maioria das sendas no Gers são circuitos de menos de 25 km; várias, muito mais curtas.
Um dos meus locais favoritos de toda a França é um povoado remoto, no meio do Vale do rio Adour, chamado Mazères. Não passa de um punhado de casas reunidas em torno de uma igreja do século XII que mais parece uma fortaleza, certamente muito grande para a região simples. Para visitá-la, é preciso atravessar a estrada, chegar à casa do "gardien" e tocar a campainha, que na verdade é um sino pendurado no portão de pedra. Se o homem grisalho que ali vive estiver em casa – que, aliás, tem um conhecimento impressionante da história da igreja e, mais importante, uma chave do lugar, vai poder lhe mostrar o santuário escuro e frio e o relicário de mármore, que mais parece uma casa de bonecas assustadora.
A seguir, segundo a tradição típica da região, ele provavelmente começará a falar do tempo e se despedirá dando-lhe uma sugestão de onde almoçar.
Por David Mcaninch