Engajados na luta contra o Aedes aegypti, os pouco mais de três mil habitantes de Ernestina, no norte do Estado, passaram a viver um sentimento de indignação coletiva ao descobrir que um vizinho acumulava cerca de 100 mil pneus a céu aberto em um depósito irregular. A quantidade é tão grande que, dividida entre a população, é como se cada morador mantivesse em casa cerca de 34 pneus com água parada. Famílias de quatro pessoas, por exemplo, teriam de acumular 136.
Nas ruas, os moradores dizem que se esforçam na eliminação de criadouros e esperavam, no mínimo, atitude semelhante do acumulador de pneus. Mas a indignação supera a decepção. O principal questionamento da comunidade é como ele conseguiu juntar tanto material sem uma intervenção imediata das autoridades.
- Se vão nas casas vistoriar os focos de mosquito, por que não fizeram nada na propriedade dele? - questionou a cozinheira Sirlei Vieira dos Santos, 58 anos.
- Só foram tomar providências agora - diz a funcionária do Banrisul Sílvia Rebeca Barreto de Araújo Gomes, 31 anos.
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A prefeitura, que pode ser responsabilizada, nega omissão na fiscalização. Mas uma pergunta ecoa no município: como um depósito de 2 mil pneus chega a 100 mil em oito anos sem providências?
A dificuldade de acesso ao terreno foi apontada como um dos principais entraves.
O depósito de pneus fica na zona rural, em uma área com cerca de dois hectares, cujos vizinhos são lavouras de soja e um matagal. Embora o local fique às margens da rodovia que liga Ernestina a Passo Fundo, a ERS-153, não é possível ver o acúmulo de pneus da via. Devido à vegetação fechada, é preciso entrar em uma estrada de chão da localidade de Esquina Penz para enxergar algumas unidades. A dimensão total do acúmulo é possível apenas com imagens aéreas.
A indignação da comunidade de Ernestina tem nas costas o peso de quase oito anos. A irregularidade teria sido descoberta em 2008, quando a prefeitura acionou o Batalhão Ambiental da Brigada Militar de Passo Fundo. A polícia vistoriou o local e encontrou cerca de dois mil pneus, o que motivou o Ministério Público (MP) a instaurar um inquérito civil para investigar o caso.
O dono da área, Daltro Luís Possamai, disse ao MP que a intenção era montar um negócio de reciclagem. Ele chegou a anexar ao processo fotos de materiais comprados para a construção de galpões para os pneus.
Meses depois, o MP determinou que o Batalhão Ambiental voltasse a vistoriar a área, e os pneus continuavam a céu aberto. O descaso fez a promotoria mover ação judicial contra Possamai, em 2009, com pedido de liminar para que os pneus fossem depositados em local adequado com urgência.
- Demos tempo para ele se adequar, mas nenhuma obra que ele iniciou foi concluída. Quando vimos que estava nos enrolando, decidimos mover uma ação judicial - explica o promotor Paulo da Silva Cirne.
Multa ao proprietário passa de R$ 1 milhão
A Justiça determinou liminarmente que Possamai armazenasse os pneus de forma correta, mas ele apenas apresentou ao processo fotos da construção de uma pequena estrutura aberta em todas as laterais. Obra que parecia uma parada de ônibus com apenas alguns pneus embaixo.
- Do ponto de vista da saúde pública, aquilo até poderia fazer sentido, pois protegia os pneus da chuva, mas continuava irregular segundo a norma ambiental. Informamos que teria de ser um local fechado e com piso impermeável - completa o promotor.
Depois do descumprimento da liminar, em 2012, a Justiça deu uma sentença ao processo: Possamai estava impossibilitado de exercer atividade com os pneus e deveria destiná-los à reciclagem. Caso descumprisse a determinação, teria de pagar multa de R$ 1 mil por dia de inadequação. Como ele foi notificado da decisão em 22 de novembro de 2012, a multa equivale a mais de R$ 1 milhão. No entanto, como o processo ainda não terminou, Possamai pode tentar reduzir esse montante.
O problema é que, durante o tempo do processo, Possamai continuou levando pneus à propriedade. A dimensão do que ele conseguiu juntar só foi descoberta no dia 13 deste mês, em uma operação do Dia D de combate ao mosquito Aedes. Na ação, o Batalhão Ambiental tirou fotos aéreas da propriedade e descobriu pneus em vários pontos da área, inclusive sob a vegetação.
O proprietário do local não quis dar muitas explicações à reportagem, apenas alegou que teria sido iludido por outras pessoas a investir na reciclagem de pneus, algo que nunca teve capital para tocar.
- Vários fatores me atrapalharam para chegar nesse extremo. Se eu for contar a verdade, ninguém acredita. Tem muita gente que me prejudicou, mais de 10 pessoas. Vinham com uma versão, me iludir, e olha aqui o que me aconteceu. Agora, oito anos de serviço não darão retorno, nenhum troquinho - afirmou, questionado pela reportagem durante visita à propriedade.
Prefeitura pode ser responsabilizada
O promotor Paulo da Silva Cirne explica que a prefeitura de Ernestina pode ser responsabilizada por falha na fiscalização em relação ao depósito, uma vez que deveria vistoriar os focos de mosquito na cidade.
- Pode ser apurada a responsabilidade do município por improbidade administrativa, por omissão na fiscalização. O município sabia do processo judicial, mas não comunicou o MP do aumento no número de pneus acumulados - explica Cirne, que analisará a necessidade de abertura de uma investigação sobre a conduta do Executivo.
Já a vice-prefeita Diná Lima da Silva afirma que, em nenhum momento, o município foi omisso, pois aguardava os trâmites judiciais do processo envolvendo o depósito. Além disso, ressalta que foi a própria prefeitura que denunciou o caso em 2008, devido à dificuldade de acesso dos agentes à propriedade, que teriam relatado ameaças do dono durante as visitas.
- Até quando a coleta acontecia (de amostras de larvas de mosquito), os vigilantes não conseguiam saber da dimensão (do acúmulo de pneus). A quantidade surpreendeu a todos, pela dificuldade de acesso ao terreno - explica Diná.
Pneus serão transformados em matéria-prima para cimenteiras
Depois de descobrir a dimensão do depósito irregular, a prefeitura decidiu entrar na Justiça com um pedido para que pudesse entrar na área e retirar os pneus. Isso porque o proprietário seria contra a remoção do material do local.
O pedido foi aceito pela Justiça, e a prefeitura conseguiu firmar uma parceria com uma organização sem fins lucrativos de São Paulo para a reciclagem do material: a Reciclanip, mantida pelos fabricantes de pneus do país. O município destinou servidores e duas retroescavadeiras para auxiliar no trabalho. Já a Reciclanip ficou responsável pelo transporte e pela reciclagem.
A remoção começou há uma semana e deve durar pelo menos mais 10 dias úteis, conforme a organização. Já a prefeitura estima que seja preciso um mês para retirar todos os pneus do local.
O material está sendo encaminhado para duas trituradoras: uma gaúcha, em Nova Santa Rita, na Região Metropolitana, e outra paranaense, em Araucária, cidade próxima a Curitiba. Triturados, os pneus são usados como matéria-prima em indústrias de cimento. Há uma em Candiota, no Rio Grande do Sul, e outra em Rio Branco do Sul, no Paraná.
- Elaboramos um plano para retirar 50 toneladas de pneus por dia, de um total de 700 toneladas que estimamos estarem no local - afirmou o gerente-geral da Reciclanip, Cesar Faccio.
O trabalho tem sido acompanhado pela Brigada Militar, pois tanto Faccio quanto a prefeitura afirmam que o proprietário do depósito tem dificultado a retirada dos pneus, tentando selecionar o que ficaria na propriedade. À prefeitura, ele teria dito que "estão levando o tesouro" dele.