A autópsia da última eleição municipal deveria servir para a esquerda refletir sobre o tempo que perde em discussões que não fazem sentido para a maioria da população, como é o caso do combate às privatizações e da exacerbação das pautas identitárias. Confunde-se, por exemplo, o saudável combate aos preconceitos com debates intermináveis sobre a necessidade da linguagem neutra, sintetizada no uso da palavra "todes", um neologismo que em nada serve para acabar com o tormento dos homossexuais que sofrem bullying nas escolas.
Uma parte do país avançou em relação aos costumes, normalizando o que os hipócritas preferem manter "entre quatro paredes", mas outra segue com a cabeça na Idade Média. Em vez de tentar mudar essas cabeças que dormem e acordam preocupados com a "ideologia de gênero" nas escolas e na sociedade, é mais produtivo lutar por políticas públicas de inclusão.
Nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal fez muito mais do que os militantes que andam de bandeira em punho defendendo mudanças na língua portuguesa para contemplar quem não se identifica com os gêneros masculino e feminino. Foi o Judiciário quem reconheceu a união civil entre pessoas do mesmo sexo, conhecido por "casamento gay", com direito a herança e dependência no plano sem precisar machucar a língua portuguesa.
O combate feroz às privatizações e suas variantes (parceria, concessão) é outro erro da esquerda que faz teses mirabolantes para explicar derrotas óbvias. As urnas vêm mostrando que a maioria da população não está preocupada se quem presta determinado serviço é uma empresa pública ou privada. O que se quer é preço justo e qualidade.
Houve tempo em que ser contra as privatizações deu vitórias eleitorais à esquerda. Hoje não funciona mais, ainda que os militantes mais radicais esqueçam a precariedade de certos serviços no tempo em que estavam sob responsabilidade de uma estatal.
A resistência ao privado em áreas estratégicas, como o saneamento, faz o Brasil amargar um dos piores índices de tratamento de esgoto em comparação com países do mesmo porte do ponto de vista econômico. As cidades têm até 2033 para atender a 99% da população com serviços de água potável e ao menos 90% dos habitantes com coleta e tratamento de esgoto. Para o cidadão, mais importante do que saber se o serviço é público ou privado é ter certeza de que terá água potável em casa e tratamento do esgoto que hoje corre a céu aberto ou polui rios e arroios.