Na discussão sobre temas indigestos, como a reforma da Previdência e a terceirização, em que tento fugir das posições radicais, é comum que leitores e ouvintes me acusem de ser uma "filhinha de papai" que trabalha sentada, em sala com ar refrigerado, ou de ter nascido em berço de ouro. E não é que essas pessoas têm razão? Sem a pretensão de escrever uma autobiografia, vou contar a verdade: sim, eu nasci em berço de ouro. Sim, eu sou filhinha de papai.
Sou a primogênita de um casal de agricultores que em 1960 morava numa casa de chão batido, sem luz, sem água encanada, sem conforto algum. Minha mãe tinha 18 anos. Meu pai, 25. Sou a filhinha de um homem íntegro e de uma mulher guerreira, que me deram amor acima de qualquer bem material. Com as próprias mãos, meu pai serrou as tábuas de pinheiro e fez o berço de ouro em que me abrigaram no frio de agosto. Com palha de milho, que pela cor lembra ouro para quem é da roça, minha mãe recheou o colchão em que sonhei meus primeiros sonhos.
As carências materiais foram compensadas por tudo o que não tem preço: amor em abundância, lições de dignidade, exemplos de ética, respeito, confiança, e incentivo para seguir em frente. A filhinha do papai ganhou seu primeiro carro antes de completar um ano de idade. Não exatamente um carro, mas uma carrocinha de duas rodas, feita de madeira. A carrocinha servia de meio de transporte para ir de casa até a lavoura e era nela que eu dormia ou ficava sentadinha, protegida pelo Duque, um genérico de buldogue, enquanto o pai e a mãe trabalhavam na terra.
Em berço de ouro nasceram também meus quatro irmãos. Porque mesmo sendo muito pobres, nunca nos faltou amor nem carinho. Cinco filhos em nove anos. Desde muito cedo, aprendemos a dividir o pão, o leite e as frutas do pomar. Juntos inventamos alternativas para a falta de brinquedos de loja. Cuidamos uns dos outros. Ensinamos aos mais novos lições que aprendemos na escola, usando carvão feito giz. Compartilhamos roupas, sapatos surrados e livros escolares. Trabalhamos na roça no turno inverso ao da escola, às vezes rezando para chover e assim escapar do sol inclemente. Aprendemos na prática o sentido de família.
A filhinha do papai teve de sair de casa aos 10 anos, para estudar na cidade, porque ele decidira que a educação seria a única herança do quinteto que dormiu em colchão de palha dourada nos primeiros anos de vida. O pai e a mãe seguiram trabalhando na roça, de sol a sol, para sustentar a prole. Ela costurava para aumentar a renda escassa. Ele não refugava trabalho. À noite, ouvia rádio para saber o que se passava no mundo. Os dois estiveram presentes em todos os momentos importantes das nossas vidas, especialmente no dia em que cada um vestiu a toga e foi diplomado.
Hoje não sou mais a filhinha de papai. Há exatos dois anos somos cinco órfãos e uma viúva que tentam, cada um a seu modo, sobreviver à ausência física preenchendo o silêncio com as lembranças que ficarão para sempre, prova de que existe vida depois da morte.