A figura do gênio, do talento extremado, admite variações. Mas um tipo concentra a atenção a ponto de ofuscar os demais: o gênio conturbado e sofredor – que poderíamos chamar de "gênio romântico".
Wagner, por exemplo. Toda a sua obra foi construída no modo agônico, em meio a angústias e incertezas. A sua correspondência revela um homem torturado por dúvidas quanto ao seu valor como músico, como artista. Mesmo depois de Lohengrin; mesmo depois de Tristão e Isolda; mesmo depois de Os Mestres Cantores de Nuremberg! Nesse tipo de artista, a obra se realiza como autossuperação. E a beleza como que pressupõe o sofrimento.
Numa chave menor, mais discreta, menos tumultuada, temos Tchekhov, que escreveu um dia a seguinte frase marcante, profundamente autobiográfica: "A insatisfação consigo mesmo é a fonte de todo verdadeiro talento". Poderia ter escrito talvez: "de todo talento construído, penosamente construído, à custa de sacrifícios". Toda a sua vida foi uma luta para abrir espaço para a prática da escrita.
Entendido como valorização ou até glorificação do sofrimento, o romantismo marca profundamente nossa cultura ocidental, desde suas raízes cristãs. E marca de tal maneira que podemos perder de vista que o gênio romântico não é o único, que há outro tipo de gênio, oposto ao romântico, mais natural, talvez mais saudável, mais ligado às raízes da vida. Refiro-me ao que poderíamos chamar de gênio clássico ou iluminista.
Mozart talvez seja o exemplo mais notável. Nele, desde a infância profunda, a musicalidade parecia fluir naturalmente, sem sobressaltos, contorções ou angústias. Um músico iluminado, desde o início.
Um episódio ficou na minha lembrança. Quando se preparava a estreia de Don Giovanni, em Praga, o tenor escalado para o papel de Don Ottavio não dava conta da ária "Il mio tesoro intanto". Faltavam um ou dois dias, e Mozart se recusava a simplificá-la. Como se resolveu o impasse? Mozart compôs outra, mais simples, igualmente maravilhosa:"Dalla sua pace". As duas árias estão incorporadas à versão final de Don Giovanni, a que é apresentada até hoje em todo o mundo.
Veja, leitor, como é imprópria a frase de Tchekhov, como ela empalidece quando referida a Mozart - um artista nato, que quando criança ou adolescente deixava transparecer em suas composições uma compreensão de sentimentos e situações que uma pessoa naquela idade não poderia ter vivenciado ou sofrido. Compunha, por assim dizer, por presságios, pressentia vivências que só mais tarde poderia viver.
Superioridade do gênio clássico? Pode ser. E, no entanto, o romantismo ressoa dentro de nós, e a sua atração persiste e sobrevive à análise e à crítica. Como escreveu Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego: "A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa a verdade interior da natureza humana. O seus exageros, os seus ridículos, os seus poderes vários de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração exterior do que há mais dentro na alma".
O romantismo marca de forma profunda nossa cultura ocidental.
Paulo Nogueira Batista Jr. é vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, sediado em Xangai, mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal.
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