Deturpação, alienação, conspiração. Três palavras para definir o ano de 2016, ano pérfido que, infelizmente, parece ter sido a abertura molto vivace da era da estupidez. Viveremos a era da estupidez em todo seu esplendor patético a partir de 20 de janeiro de 2017. Até lá, vale lembrar a trajetória histórica da nona sinfonia de Beethoven, o movimento Ode à Alegria deturpado em Auschwitz, exemplo mais do que emblemático da estupidez infinita, a capacidade ilimitada de deturpar o que há de mais edificante na produção humana.
Ao longo dos últimos dois séculos, desde sua primeira execução em 1824, a majestosa nona sinfonia foi apropriada por grupos radicalmente diferentes para promover suas ideologias e ideais. Nacionalistas alemães e republicanos franceses, comunistas e católicos, todos a abraçaram. Leonard Bernstein a regeu para marcar a queda do Muro de Berlim, o psicopata de Stanley Kubrick em Laranja Mecânica tem nela a inspiração para a violência. Hitler comemorava seus aniversários com ela, o governo racista e genocida da antiga Rodésia, jamais reconhecida como país, utilizou a nona sinfonia como hino durante a guerra fria. Hoje, a obra mais marcante que um ser humano já produziu é hino da União Europeia. Essas e outras histórias são esmiuçadas e analisadas por Esteban Buch em Beethoven's Ninth: A Political History. Usos, abusos, contradições, deturpações. A história política da nona sinfonia é a cara de 2016 e daquilo que nos espera.
Considerem o comércio internacional. A China conquistou o pico da geopolítica internacional por meio da abertura comercial perseguida com afinco ao longo dos últimos vinte anos. A Índia prepara-se para trilhar caminho semelhante. Na América Latina, os países que não foram contaminados pela esquerda idosa, aquela que quando ficou velhinha veio morar no Brasil, na Argentina, na Bolívia, no Equador, na pobre Venezuela, abriram-se para o mundo e não têm a menor intenção de voltar atrás. Na Ásia emergente, não há país que dê ouvidos aos berros protecionistas proferidos por governantes e futuros governantes de países onde a queda de barreiras comerciais e a exaltação da integração mundial já foram molto vivace, a parte que mais gosto da nona sinfonia.
A integração comercial e financeira, as transferências tecnológicas por elas facilitadas, a inserção da indústria de países emergentes nas cadeias globais de valor, a geração de empregos, sobretudo de postos que privilegiam conhecimento tecnológico mais aprimorado e que pagam melhores salários, todos resultaram da globalização. Há estudos e mais estudos detalhando empiricamente como isso ocorreu, como países pobres ou de renda média foram capazes de deixar para trás o subdesenvolvimento desesperançado dos anos 50, 60, 70, modificando o padrão de vida das pessoas, tomando as rédeas de seus próprios rumos de desenvolvimento a partir da abertura externa. Claramente, falta muito para o nirvana. Mas não há país emergente no mundo que não enxergue os benefícios da integração e que não se assuste com as deturpações que hoje dão o tom do debate internacional sobre a globalização.
Recentemente, escrevi artigo sobre a mania brasileira de querer importar para o país tudo o que vem de fora – o "antiglobalismo" à brasileira como a reedição do bom e velho complexo de vira-lata. O Brasil, isolado, esquecido, apequenado, não aguenta mais tacanhice. Ideias toscas semeadas em solo nacional já as temos em profusão.
Nesse fim de 2016, início da era da estupidez, recomendo àqueles que estejam tentados a repetir as sandices dos outros que parem tudo por pouco mais de uma hora, apenas 180 minutos. Ouçam a nona sinfonia, allegro ma non troppo, molto vivace, adagio, recitativo. Esqueçam o resto.
Leia outras colunas em zerohora.com/monicadebolle