João Carlos não se lembra do título do filme. Não se lembra nem do nome da namorada (Cristina? Virgínia?). Mas se lembra do grito. João Carlos nunca esqueceu o grito.
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Era a primeira vez que iam a um cinema juntos, ele e a namorada (Renata? Roberta?). Um filme de terror. A mão assassina, A mão do morto, qualquer coisa assim. Ainda nos trailers, João Carlos passou o braço pelo encosto da poltrona da namorada. Com 15 minutos de filme, sua mão já estava no ombro da namorada. Na tela, a moça começou a descer a escada que dava para o porão da casa assombrada. A mão de João Carlos desceu pelo braço da namorada. A moça descia a escada lentamente, degrau a degrau. A mão de João Carlos descia lentamente pelo braço da namorada. A moça do filme deixou cair sua lanterna. João Carlos mudou de posição para aumentar o alcance da sua mão. A moça chegou no chão do porão e começou a tatear na escuridão. A mão de João Carlos avançou mais um pouquinho, em direção ao seio da namorada (Carlinda? Clotilde?). A mão de João Carlos chegou ao seio da namorada no exato momento em que, na tela, uma mão decepada agarrava o tornozelo da moça. E a namorada deu um grito.
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Não foi um grito comum, de susto. Foi um grito de pavor, mais alto do que o grito da moça no filme. Um grito primevo, um ganido animal, terrível, assustador. Nas fileiras da frente do casal, todos se viraram para trás para ver de onde saía aquele som sobre-humano. João Carlos largara o seio da namorada rapidamente, ele também espantado pelo grito. Alguém das fileiras da frente perguntou o que tinha havido e João Carlos improvisou:
– Acho que ela viu um rato...
Nas fileiras de trás, não tinham identificado a origem do som. Surgiram teses. Alguém estava passando mal. Só podia. Deveriam interromper a sessão. Era óbvio que quem gritava daquele jeito precisava de atendimento médico. Ou então o que causara o grito fora...
– Fogo!
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Houve uma debandada para as saídas. Não demorou muito e apareceram os bombeiros e a polícia. Fogo, onde?
A namorada não sabia explicar o que causara seu grito. Fora a cena do filme, certo, a mão decepada pegando o calcanhar da moça, mas fora mais alguma coisa.
O quê? Na falta de uma resposta, foram todos para a delegacia.
No caminho, João Carlos pediu:
– Não fala do seio.
– Tá – disse a namorada (Angela? Anita?).
Combinaram ir ao cinema juntos de novo, desta vez um musical. Mas nunca mais se viram.