Liberado na Argentina, o trigo geneticamente modificado ainda tem um longo caminho a ser percorrido no Brasil. O processo para a regulação foi protocolado em 2019 e na próxima semana tem um importante capítulo: a audiência pública na CTNBio, marcada para o dia 22. É uma discussão inicial, com o foco na avaliação da segurança da nova tecnologia.
— A resposta a ser dada é se o evento é ou não seguro, ou se precisa de mais estudos. Se for considerado seguro, aí é que vão entrar questões comerciais futuras — explica Alexandre Garcia, gestor de pesquisa da Tropical Melhoramento Genética (TMG), empresa que, no Brasil, será parceira na parte regulatória.
A companhia de soluções genéticas nascida no Mato Grosso se junta nesta etapa à argentina Bioeceres, desenvolvedora do trigo geneticamente modificado (ao lado da francesa Florimond Desprez). A coluna conversou com Garcia sobre o tema. Confira trechos.
A liberação comercial do trigo geneticamente modificado na Argentina trouxe apreensão e gerou contrariedade por parte da indústria brasileira. A entrada e a liberação dessa tecnologia no Brasil devem ocorrer em curto prazo?
Esse processo que está acontecendo agora no Brasil é puramente regulatório. A resposta a ser dada na audiência pública é se o evento é seguro, é isso que está sendo avaliado. Se for seguro, aí vão entrar questões comerciais futuras. No Brasil, antes de 2023, não será comercial. A CTNBio tem várias regras. Avalia primeiro qual o gene inserido. Nesse caso, foi o de um girassol (chamado de HB4), que já está no consumo humano e que foi transferido para o trigo. O que mais interessa ao consumidor são análises de equivalência nutricional. Também é feito estudo para saber se é alergênico, é um protocolo bem extenso de segurança. A audiência pública faz parte do processo de avaliação.
Qual o efeito da introdução do gene HB4?
Oferece uma melhor resposta em situações de estresse hídrico e de salinidade, de solos salinos. Toda planta em situação de estresse começa a entender que precisa se reproduzir logo, entra em processo de maturação, acelera o ciclo, para com processos biológicos. Entra em modo de sobrevivência, não mais de produção, digamos assim. Esse gene entende o contrário. Sabe que, mesmo em situações de estresse, pode continuar indo um pouco mais além. Então, os processos biológicos da planta não param. E ela mantém o rendimento superior. Não mantém os mesmos rendimentos de uma planta em situações normais, mas melhores do que os de uma que não tem (esse gene). O HB4 em situação normal vai produzir tão bem ou um pouquinho melhor do que a planta sem esse gene, pode ser considerado neutro. Em caso de estresse, vai dar 20%, 30% até 40% mais produtividade do que a planta que não tem o gene. Garante estabilidade de produção e aumento de produção em anos ruins ou em áreas marginais sem ter de aumentar a área.
Isso permitiria também o desenvolvimento do cereal em áreas não tradicionais do Brasil?
A gente aposta muito nisso. Como não temos liberação para o plantio no Brasil, precisamos fazer o teste. Mas o gene se comporta muito bem nessas situações. Estamos vendo movimentos de expansão do trigo no Brasil para o Cerrado, para a Bahia, e apostamos que seja uma boa ferramenta para auxiliar nessa expansão para outros Estados. Esse gene é para falta de água, estresse hídrico. Quando o ambiente é mais quente, esse estresse pode se potencializar. O que motivou na Argentina foram os anos e irregularidade na produção por falta de chuva.
Uma das preocupações apontadas é a de que a indústria e o consumidor não manifestam demanda pela tecnologia. Como vocês avaliam essa questão?
Temos uma percepção diferente . Hoje em dia, caiu muito o estigma de transgenia. Pelo menos para a grande maioria da população. Acreditamos que o consumidor está muito mais preocupado com uma agricultura sustentável do que o produto ser transgênico ou não. Primeiro, porque passa por uma análise de segurança que nenhum outro alimento que a gente consome passa. E, basicamente, o transgênico está presente em 100% da alimentação. É um paradigma enorme de um setor muito tradicional. Toda a vez que a gente fala em inovação, há um receio ligado a algum apego do passado. É esperado que isso aconteça. Se a gente pensar friamente, do que é feito o pão? Farinha, água, óleo ou margarina e açúcar. O óleo e a margarina são transgênicos. Existe cana transgênica, então pode ser também. E o trigo nisso não vai fazer diferença. Aí se fala do macarrão, que é só água e trigo. Mas e quem não põe óleo para cozinhar o macarrão? O óleo é transgênico. Acaba fazendo o molho, põe amido de milho ali. É muito cotidiano. É só uma questão de que isso é seguro e já faz parte da nossa alimentação.
A entrada do produto argentino também não seria imediata?
Está longe. Não é assim. Hoje, mesmo se quisesse, na Argentina não tem variedade comercial aprovada, volume para chegar. Então, demora. Segundo, a comercialização no Brasil poderia vir a partir de 2023, fazer as importações da Argentina, antes disso, não. E, mesmo assim, você pensa que uma variedade de soja, que é uma commodity, do produto transgênico, hoje está com 80%, 90%, mas demorou anos para chegar nessa escala e com vários eventos e várias empresas. Trigo é um mercado de especialidade muito diferente. Então, a gente acredita que dificilmente vai acompanhar a proporção da soja. E o trigo tem a questão de qualidade muito forte. A gente sempre vai trabalhar com um modelo de segregação, do que é transgênico e o que não é. E sempre haverá opção de compra. Será uma opção para o consumidor e é uma questão mais para frente. É um processo que está em discussão com toda a cadeia, ninguém quer empurrar nada.
A TMG já obteve a liberação comercial para a soja com gene comercial no Brasil? Quando deve entrar no mercado?
Tem a parte da segurança analisada e poderia ser comercial, mas ainda não é porque falta em outros países que são importantes, como China e União Europeia. Você tem de pensar globalmente. Se não tiver aprovação em todos os países consumidores do produto, é muito arriscado lançar no mercado. A soja foi aprovada no Brasil em 2019, a gente conta com a aprovação da China ainda neste ano e na Europa em 2023. Então, a gente poderia comercializar em 2023.