Cenas de sexo foram um ponto em comum no 52º Festival de Cinema de Gramado. No dia da abertura, tivemos a sessão hors-concours de Motel Destino, filme do diretor cearense Karim Aïnouz que, como o título deixa entrever, se passa praticamente todo em um cenário dedicado ao ato sexual.
O primeiro concorrente aos Kikitos da mostra de longas-metragens nacionais, O Clube das Mulheres de Negócios, da cineasta paulista Anna Muylaert, virou notícia por causa da orgia estrelada pela octogenária atriz gaúcha Ítala Nandi e por vários rapazes. Na mesma noite, o capítulo inicial do seriado Cidade de Deus: A Luta Não Para, dirigido pelo baiano Aly Muritiba, trouxe uma tórrida transa dos personagens interpretados por Thiago Martins e Andreia Horta. Depois, outro longa da competição, Estômago 2: O Poderoso Chef, do paranaense Marcos Jorge, contou com transas na Itália, a cargo do personagem vivido por Nicola Siri, e no Brasil, onde os diálogos de duplo sentido do agora coadjuvante Nonato (João Miguel) conferem um molho cômico à cena.
Na sessão de Cidade; Campo (2024), Gramado ofertou um momento antológico do cinema, que agora pode ser apreciado pelo público de Porto Alegre, com a estreia do filme no CineBancários e no Espaço Bourbon Country.
O filme da diretora paulista Juliana Rojas saiu da Serra com dois Kikitos: melhor atriz, para Fernanda Vianna, e o prêmio do Júri da Crítica. A justificativa, escrita por Diego Benavides e lida no palco do Palácio dos Festivais por Mariane Morisawa, foi a seguinte: "Pela excelência narrativa e estética de histórias que refletem sobre as dores particulares dos personagens e, ao mesmo tempo, mobilizam questões humanas universais sobre ausências e afetos, além de vislumbrar as delicadas relações entre passado, presente e futuro por meio de uma abordagem sensível, feminina e fantasmagórica, potencializada pelo trabalho tocante de suas atrizes".
Ganhador do troféu de direção na mostra Encounters (para cineastas independentes) do Festival de Berlim, Cidade; Campo é o quarto longa de Juliana Rojas, que também venceu o prêmio da crítica no Festival de Gramado de 2014 com Sinfonia da Necrópole e competiu na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes de 2011 com Trabalhar Cansa, coassinado por Marco Dutra. Com ele, fez ainda As Boas Maneiras (2017), prêmio especial do júri no Festival de Locarno.
Ao falar sobre o filme, a diretora pediu que o espectador "se sentisse entrando em um barco num rio, se deixando ser conduzido". Como o uso do ponto e vírgula no título sugere, o filme conta duas histórias. Na primeira parte, mais curta e mais bem resolvida, Fernanda Vianna interpreta Joana, uma trabalhadora rural que, após o trágico rompimento de uma barragem, vai morar com a irmã na cidade de São Paulo. Ao mesmo tempo em que arranja emprego num aplicativo de faxinas, ela tenta encontrar elementos que a reconectem com o telúrico — uma urgência existencial, a julgar pelos sonhos recorrentes com um cavalo branco que galopa em um campo verde.
Na segunda parte, mais longa — muito por causa do ritmo adotado, que exige paciência — e mais mística, dá-se o inverso: Flávia (Mirella Façanha), uma supervisora de TI, e Mara (Bruna Linzmeyer), que trabalhava na indústria de rações para animais, formam um casal que sai do urbano (eram as donas de um apartamento limpo por Joana) e vai para a fazenda que a primeira herdou do falecido pai. A natureza, a vida animal e o céu estrelado ora convidam à paz de espírito, ora as obrigam a lidar com lembranças ruins, a morte e fantasmas. O pé na terra, como diz uma coadjuvante, provoca a "procurar a sua história, aprender a sua canção".
Antes de a tempestade cair, contudo, há um temporal de amor — literalmente: esse é o título da canção de Leandro & Leonardo que embala a dança da sedução de Mara para Flávia, em certa noite.
Quando as duas vão de fato para a cama, Juliana Rojas corta a música, para evitar qualquer tipo de humor involuntário, decorrente do emprego de um clássico brega. Com sensibilidade, a cena celebra não só a diversidade sexual, não só a diversidade racial (Flávia é negra, Mara é branca), mas também a diversidade de corpos. Sensualmente, as mãos e os pés da personagem de Bruna Linzmeyer passeiam pelo corpo obeso da parceira encarnada por Mirella Façanha, demorando-se em suas dobras. Sob o olhar de uma equipe feminina (além de Rojas, há as diretoras de fotografia Cris Lyra e Alice Andrade Drummond, a montadora Cristina Amaral, as diretoras de arte Juliana Lobo e Daniella Aldrovand, a compositora Rita Zart), que equilibra delicadeza e quentura, Flávia e Mara ilustram a comunhão carnal como raras vezes se viu no cinema brasileiro.
Na entrevista coletiva concedida em Gramado, Juliana Rojas e as duas atrizes falaram sobre a cena.
— É sobre a possibilidade do afeto em um mundo que a gente está tentando sobreviver, em um cenário tão duro. É como ter algo de esperança — afirmou Rojas.
— Apesar do luto, das travessias, das dores, das faltas, dos fantasmas emocionais e reais, o que sustenta é o afeto. Inclusive, eu, como atriz, me sustentei nos afetos. Conseguimos construir um afeto em que o corpo de uma se aconchega no outro com muito afeto. O corpo é casa, o corpo da outra é casa — contou Bruna Linzmeyer.
— Fico muito emocionada com a mudança de perspectiva sobre algo. É a construção do imaginário de humanização em pessoas como eu. É mais fácil encontrar afeto no que achamos humanos, e isso mora nos padrões — comentou Mirella Façanha.