Uns se sentem dispostos nas primeiras horas da manhã. Outros dizem “funcionar” apenas à tarde, depois de dormir até perto do meio-dia. Há quem se sinta desperto à noite. Não existe um padrão quanto ao horário de acordar, estar mais focado em atividades cotidianas ou ao momento de sentir sono.
Na linguagem científica, essa particularidade é chamada de cronotipo: cada pessoa tem um relógio biológico próprio, que controla a ação humana desde a produção de hormônios a comportamentos como dormir e acordar. É a cronobiologia a responsável por estudar esses fenômenos.
Ainda que haja diferenças entre os perfis, os seres humanos seguem um modelo geral chamado de ritmo circadiano — do latim circa diem, que significa “cerca de um dia”. Ou seja, o organismo sincroniza as funções fisiológicas em um período de cerca de 24 horas – tempo em que a Terra demora para dar uma volta em torno do próprio eixo.
O ciclo circadiano é observado pela ciência em estudos experimentais em organismos que vão de seres unicelulares até mamíferos, segundo Giovana Dantas, bióloga e doutora em Neurociências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— Todos os seres vivos têm seu próprio ritmo biológico. A planta tem o seu momento para florescer, assim como certas culturas dão frutos no inverno e outras no verão. Isso está relacionado com a maneira como os organismos se adaptam em relação à quantidade de luz e temperatura. É uma questão de evolução — explica.
O “relógio” do nosso corpo fica no cérebro, em uma região chamada de núcleo supraquiasmático. Esse ponto recebe a informação da retina sobre o ritmo claro ou escuro do ambiente. A partir desses dados, o núcleo atua para sincronizar os comportamentos conforme a fase do dia.
— A noite, ou seja, o escuro, é o sinal ambiental para que o nosso corpo libere a melatonina, que ajuda a promover o sono. O início do dia encerra a produção desse hormônio e ocorre o pico de cortisol, o que sinaliza para nosso organismo que é o momento de despertar — acrescenta a especialista.
Um exemplo da influência do claro e escuro no comportamento humano é quando a pessoa faz uma viagem longa na qual há uma diferença relevante de fuso horário.
— Podemos estar despertos, atentos, quando chegamos ao nosso destino, mas é possível não estarmos com vontade de dormir à noite, porque nosso organismo demora para reconhecer os períodos diurno e noturno do lugar em que chegamos — pontua Giovana.
Perfis e hábitos diferentes
A ciência separa em três os perfis de cronotipo, definidos pelos genes do relógio biológico – ou genes clock, na expressão científica. Não há, porém, um marcador exato do horário que separa um grupo do outro.
Os matutinos são os com preferência por acordar no início do dia e realizar atividades durante a manhã e à tarde, pois tem mais disposição para realizar tarefas e melhor concentração nesses períodos do dia.
Os vespertinos preferem acordar mais tarde e manter uma rotina de compromissos depois do meio-dia até o turno da noite, inclusive de madrugada. Há os intermediários – a maioria da população, segundo as estudiosas – que ficam entre os dois primeiros grupos.
— Os matutinos tendem a ter mais disposição para fazer atividades mais cedo do que os vespertinos. Além do horário de despertar, os cronotipos apresentam diferenças em horários de melhor desempenho mental, sono e pico de temperatura corporal — resume Leticia Ramalho, nutricionista e doutora em Cronobiologia.
Cronotipo é a preferência individual geneticamente estabelecida para o horário de dormir e acordar. Por isso, não há como escolher ser uma pessoa matutina ou vespertina
LETICIA RAMALHO
Nutricionista e doutora em Cronobiologia
A separação de perfis também não é clara quanto ao momento no qual a pessoa fica mais disposta ou focada em atividades cotidianas, pois isso pode variar conforme os processos de cada organismo.
Um vespertino, por exemplo, pode acordar às 11h e estar sem nenhum sinal de cansaço uma hora depois; outro do mesmo cronotipo é capaz de se sentir melhor às 15h. O horário do sono também segue o padrão: matutinos dormem mais cedo e vespertinos preferem descansar mais tarde.
Engana-se quem pensa que pode mudar por vontade própria esse tipo de comportamento:
— Cronotipo é a preferência individual geneticamente estabelecida para o horário de dormir e acordar. Por isso, não há como escolher ser uma pessoa matutina ou vespertina — acrescenta Leticia.
O pico da secreção de hormônios é influenciado pelo cronotipo. Mesmo geneticamente determinado, o perfil pode apresentar mudanças em certos períodos, acrescenta a estudiosa.
— Considerando a epigenética, os horários de sono e maior atividade podem variar durante a vida. Crianças em idade escolar tendem a ser mais matutinas. Depois, na adolescência, elas são mais vespertinas. Na idade adulta é quando se estabelece o cronotipo da pessoa — conta.
O tipo de perfil é também responsável por influenciar na alimentação, conforme a nutricionista. Os que acordam mais cedo tendem a não ter fome no início do dia. Os vespertinos podem ter apetite apenas no almoço e, por isso, deixar de se alimentar pela manhã. Não há certo ou errado com essas particularidades, conforme Leticia:
— É importante a pessoa entender o próprio ritmo e não forçar uma alimentação. Não há problema almoçar ou jantar mais tarde. Existe toda essa cultura de que comer à noite engorda. Não é assim que funciona: em uma alimentação saudável, o que conta é tudo o que você come ao longo do dia, mesmo que você coma tarde.
Viver em meios a mudanças
É comum que mudanças no cronotipo durante a vida causem conflitos com os compromissos. Pode, por exemplo, ser custoso para um matutino – quem acorda cedo – estudar ou trabalhar à noite, período em que o organismo “desacelera” e se prepara para dormir. O relógio biológico de vespertino, aqueles que despertam mais tarde, poderá deixá-lo sonolento no início da tarde, durante uma aula.
— A sociedade é mais ou menos desenhada para o padrão intermediário, de quem acorda às 7h ou 8h e dorme antes da meia-noite. Tem uma hora em que as atividades começam e a pausa para o almoço; no fim da tarde, é o momento encerrar os compromissos, jantar, descansar e dormir. Quem fica fora desse eixo não se adapta completamente — pontua Eduardo Garcia, pneumologista e integrante do Laboratório do Sono da Santa Casa de Porto Alegre.
Segundo Garcia, a estimativa é que metade dos brasileiros faça parte dos intermediários, o que força que vespertinos e matutinos tenham de se adaptar. Por ser algo genético, não há como mudar o cronotipo, nem com a adoção de rotinas de exercícios em determinados momentos do dia ou a troca da alimentação, segundo o especialista.
É possível, no entanto, adotar práticas para melhorar a qualidade do sono para qualquer tipo de perfil, em especial o caso de quem dorme mais tarde e precisa acordar cedo. É importante, ainda, respeitar a quantidade de sonos recomendada para cada fase da vida.
— O vespertino pode, depois das 18h, tentar concluir as atividades mais cedo, reduzir a luz, evitar café e estimulantes à noite, chimarrão, além de evitar fumar e consumir álcool. O matutino não tem grandes problemas se trabalha de manhã e tarde, mas pode ser prejudicial se tiver atividades à noite. Infelizmente, por conta dos compromissos, as pessoas acabam se “adaptando” a um ritmo que não é o delas — afirma.
O especialista argumenta que pode haver prejuízo para quem adota uma rotina distinta da maioria: trabalhar durante a noite e madrugada e deixar o dia para descanso. A prática aumenta em 10% o risco de morte na comparação com quem tem hábitos diurnos, conforme um estudo da Northwesterns Feinberg School of Medicine, dos Estados Unidos. Esse grupo também se torna mais vulnerável a desenvolver problemas psicológicos, neurológicos, gastrointestinais, respiratórios e diabetes.
— O ideal é a pessoa adotar uma rotina adequada ao seu cronotipo. Eventualmente, pode-se usar algum medicamento para melhorar o sono, mas isso será uma saída artificial e contra a natureza dela — comenta o médico da Santa Casa.