
Gravado em vídeo, o massacre público cometido por homens, mulheres e até crianças contra a dona de casa Fabiane Maria de Jesus teve seu horror amplificado pela constatação de que a vítima confundida com uma sequestradora de crianças, a partir de um retrato-falado difundido em redes sociais, era completamente inocente das acusações.
Mas, e se ela fosse culpada, o linchamento seria justificável?
Para quem acredita na democracia, a resposta é não. O problema é que, no Brasil, o sistema democrático ainda está engatinhando, avalia Guilherme Arruda Aranha, coordenador de pesquisas do Instituto Norberto Bobbio e professor de direito da PUC-SP.
- Existe uma má compreensão do que é a democracia. Não chega a ser uma desilusão com o sistema, mas o próprio desconhecimento do que é a democracia - analisa.
Depois de 20 anos de ditadura militar e uma história entrecortada por períodos autoritários, o Brasil ainda estaria suscetível às ilusões de segurança trazidas por punições rápidas e severas, à revelia do processo de defesa. A mesma fatia da população que apoia os justiçamentos seria aquela que associa a ideia de direitos humanos a uma espécie de "privilégio" para quem descumpre a lei - representada por porta-vozes como a apresentadora de televisão Rachel Sheherazade, que defendeu em rede nacional o direito de "cidadãos de bem" espancarem infratores como "uma legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite".
- Na democracia a Justiça leva tempo, o assunto sai da mídia, e as pessoas acham que não acontece nada. Condeno o linchamento em qualquer caso, mas esses enganos revelam o lado mais cruel, do que significa dar uma resposta imediata e matar um inocente. Morreu recentemente o proprietário da escola de Base, acusado de abuso sexual. Ele também sofreu um linchamento moral, social. E foi um erro - ressalta Arruda.
Outro fator a ser considerado ao se analisar a nova onda de linchamentos no país é o contexto político. Depois das manifestações que varreram o país em junho do ano passado, além do sentimento de indignação que insuflou a nação, ficou ainda mais explícito o despreparo e a violência policial - cotidianamente vivenciados por moradores de periferia, mas até então ignorados pela classe média.
- Isso aumenta a percepção de que a mudança só pode ser feita por violência. É preciso mudar a concepção de Justiça, e isso começa com uma polícia mais investigativa e menos abusiva - defende a professora Alba Zaluar, professora de antropologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e autora de
livros como Violência, Cultura e Poder (FGV, 2000).
Ao permitirem o compartilhamento de opiniões e informações na velocidade de um clique, as redes sociais contribuem para disseminar estados de ânimo acirrados. Pessoas que individualmente não se sentiriam encorajadas a defender certas posições, ao encontrarem outros que pensam parecido, podem dar vazão a manifestações extremas.
- Hoje, quando acontece alguma coisa é divulgado mais rapidamente, e aumenta a sensação de que não dá para confiar na polícia, nas instituições. Existem tribos da cultura do ódio. Boaventura de Sousa Santos escreve sobre a emergência do fascismo societal, um certo fascismo enraizado que favorece a cultura do ódio contra o outro, contra o diferente - diz o sociólogo Rodrigo de Azevedo, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-RS.
Ao mesmo tempo em que as redes são canais para estimular a liberdade, podem propagar sentenças apressadas como os que redundaram na morte de Fabiane. E o compartilhamento apressado de uma informação duvidosa pode ser a primeira pedra para um linchamento moral.