
Após a Procuradoria-Geral da República (PGR) firmar um acordo de delação premiada com os sócios do J&F criticado pelo suposto excesso de benevolência concedido aos empresários, o Ministério Público Federal (MPF) no Distrito Federal fechou um acordo de leniência bilionário com a controladora dos negócios dos irmãos Batista. Ao longo dos próximos 25 anos, o conglomerado terá de desembolsar multa de R$ 10,3 bilhões.
Segundo MPF, trata-se do valor mais alto já acertado para esse tipo de colaboração no mundo.
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Especialistas, entretanto, consideram a quantia irrisória, uma vez que representa somente 5,62% do faturamento do J&F em 2016. O montante a ser pago por ano equivale a um dia da receita do grupo.
– Esse valor não me seduz porque tem de ser analisado o tamanho do prejuízo para a administração pública. Em valores nominais, pode até ser o mais alto, mas a avaliação tem de ser qualitativa, colocando na balança o que houve de prejuízo e o que o grupo causou de dano para o país – observa Fabrício Medeiros, professor do Centro Universitário de Brasília e sócio do escritório Andrade Maia.
Após seis tentativas de acerto, iniciadas em fevereiro, o valor foi definido na noite de terça-feira. Agora, autoridades e advogados discutem as cláusulas do acordo, que deve ser assinado em breve. Inicialmente, o MPF previa multa de R$ 33,6 bilhões, mas a lei indica descontos de até dois terços. A primeira proposta da J&F era de R$ 1,4 bilhão.
Até então, o maior acordo com multa da história mundial havia sido firmado com Odebrecht e Braskem, no âmbito da Lava-Jato. Juntas, as companhias, que integram o mesmo grupo empresarial, foram penalizadas em quase R$ 7 bilhões. Mas, mesmo diante do valor bilionário, o criminalista Fernando Castelo Branco, professor do Instituto de Direito Público de São Paulo e da PUC-SP, avalia que o cálculo deve considerar o tamanho do dano causado ao país:
– Ficou evidente que o acordo de delação foi extremamente benéfico com os colaboradores, que, segundo eles próprios, corromperam quase 2 mil autoridades públicas, se beneficiaram de empréstimos no BNDES, galgaram posições estratosféricas no cenário econômico e saíram completamente isentos. Acredito que essas críticas serviram como pressão para que se chegasse a esse valor, mas pergunto quanto de proveito essas empresas tiveram. Seguindo essa lógica, a quantia é absolutamente irrisória dentro do cenário de corrupção institucionalizada.
A leniência funciona como uma espécie de delação premiada, mas com validade para pessoas jurídicas. A partir do acerto, as empresas podem continuar sendo contratadas pelo poder público e retirar empréstimos junto a instituições financeiras. Mas, para isso, concordam em colaborar voluntariamente com as investigações e apresentar provas para responsabilizar os demais infratores.
Conforme o MPF, o percentual da multa em relação ao faturamento da empresa estipulado para a J&F corresponde à média acertada em outros acordos de leniência firmados na Lava-Jato. No entanto, diferentemente dos demais, todo o valor ficará no país.
Do total, R$ 8 bilhões serão destinados aos fundos de previdência da Caixa e da Petrobras, ao BNDES, à União, ao FGTS e à Caixa. O restante será pago em projetos sociais, especialmente nas áreas de educação, saúde e prevenção da corrupção. O acordo inclui as irregularidades apuradas em cinco operações que investigavam o grupo – Greenfield, Sepsis, Cui Bono, Bullish e Carne Fraca.
– Do ponto de vista da empresa, está se jogando com a legislação que existe. Não é um ilícito se valer da legislação para tentar recuperar uma imagem que saiu completamente destroçada. Mas é lógico que o objetivo não é a recuperação do patrimônio público desviado, mas a recuperação da imagem da empresa – analisa Medeiros.
Os maiores acordos desse tipo de colaboração na história mundial
J&F
R$ 10,3 bilhões
Valor estimado em R$ 20 bilhões, considerando o IPCA
Pagamento em 25 anos
1ª parcela em dezembro de 2017
Todo o valor ficará no Brasil
Ainda não foi assinado. Depois, necessita de homologação pela Justiça
Odebrecht
R$ 3,28 bilhões
Valor estimado em R$ 8,5 bilhões, com correção da taxa Selic
Pagamento em 23 parcelas anuais
1ª parcela em 30 de junho de 2017
Valor dividido com Estados Unidos e Suíça. Brasil ficará com 82,1%, o correspondente a R$ 3,1 bilhões
Já foi homologado pela Justiça
Brasken
R$ 3,1 bilhões
Pagamento de R$ 1,6 bilhão à vista e R$ 1,5 bilhão em seis parcelas anuais a partir de janeiro de 2018
Valor dividido com Estados Unidos e Suíça. Brasil receberá pouco mais de R$ 2,2 bilhões
Já foi homologado pelas Justiças norte-americana e suíça, mas ainda não pela brasileira
" O valor reflete a dimensão das condutas", afirma especialista
Entrevista: Flávio Henrique Unes Pereira, doutor em Direito Administrativo e professor do Instituto de Direito Público de São Paulo
Como o senhor avalia o acordo?
Há algumas balizas que a própria lei anticorrupção e o decreto que a regulamenta preveem para mensurar esse valor. O acordo de leniência evita que se chegue ao final de um processo punitivo. Então, se utiliza de algumas balizas, como o tamanho da punição caso se chegasse ao fim desse processo. No âmbito da lei anticorrupção, o acordo de leniência tem efeito em relação à pessoa jurídica, não blindando em relação à lei de improbidade administrativa, à ação penal ou a medidas que possam ser adotadas pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). A legislação começou em 2014, ainda é muito nova no país. Mas, seguramente, é o maior valor aplicado até hoje no âmbito dessa legislação.
Quais conclusões pode se tirar desse valor bilionário?
Seguramente, reflete a dimensão das condutas praticadas pela empresa. Pode-se imaginar que, diante de um valor como esse, os efeitos dos atos praticados tinham uma extensão gigantesca. Caso contrário, não se teria uma leniência com esse valor firmado. É lógico que há uma proporcionalidade em relação ao que foi feito para dimensionar o quanto deve ser pago.
Qual o interesse da empresa em fechar um acordo?
É firmado para que a empresa não corra o risco de sofrer sanções da lei anticorrupção, que não se limitam à multa. Há outras previstas e que tem vários efeitos, como a própria extinção da empresa, a mais drástica. Mas é importante dizer que um eventual prejuízo ao erário público não faz parte do acordo de leniência. Para além desse valor, deve-se apurar se houve algum dano ao dinheiro público e, se houver, também deve ser ressarcido, independentemente do valor pactuado no acordo de leniência. Existem também outras repercussões na lei e que a empresa se blinda, como suspensão parcial das atividades, dissolução compulsória da pessoa jurídica e proibição de receber incentivos ou empréstimos de entidades e instituições financeiras públicas. Essa seria uma das vantagens: quando se faz um acordo de leniência, a empresa se blinda dessas sanções, além de, em tese, pagar valor de multa menor do que se chegasse ao fim de um processo punitivo.
Os termos das delações da JBS, criticados por conta dos benefícios concedidos aos empresários, podem tem influenciado o valor acertado no acordo de leniência?
Não posso fazer suposições sobre as intenções ou a estratégia de qualquer uma das partes na tentativa de mitigar uma crítica, mas posso dizer que uma delação deste tamanho, em que assistimos os infratores fora do país em condições extremamente confortáveis, gera perplexidade e preocupação. Não me parece que o simples fato de importantes atores do cenário político serem implicados justifica uma premiação dessa natureza. Causa preocupação a aplicação da legislação para que não sirva de precedente que banalize o instituto. Espero que essas críticas sejam respondidas com critérios técnicos, e não com atitudes paralelas, como seria fixar um alto valor de leniência para mitigar as críticas à delação.
*Zero Hora