O Brasil já cantava, em 1994, o sucesso atemporal "Esmola", da banda Skank, com frases que refletiam a realidade da mendicância presente nas ruas das maiores cidades do país. Naquele ano, por mais comum que fosse, principalmente em capitais como Belo Horizonte, citada na música, a prática de pedir dinheiro "por ociosidade ou cupidez" ainda era considerada Contravenção Penal, podendo resultar na chamada "prisão por vadiagem".
O item do decreto-lei, de 1941, foi revogado em 2009, sob justificativa de adequar a legislação brasileira à realidade social e econômica; em um contexto de recorrentes crises que geram o agravamento da desigualdade. Em pontos mais movimentados de Caxias do Sul, a presença de pessoas que pedem dinheiro nas ruas tem sido comum nos últimos anos — sendo eles moradores de rua ou não. Colocando-se à margem da assistência social do município, algumas encontraram na mendicância uma fonte de renda permanente para o próprio sustento.
Uma esmola,
pelo amor de Deus
É com o nome de Deus que Fernanda Lemes, 18, e Heliton Silva, 25, pedem dinheiro nos semáforos da área central de Caxias do Sul. Sem horário, local e valor de arrecadação fixos, eles dizem que há cerca de cinco meses esta tem sido sua única fonte de sustento.
— Deixamos o abrigo da prefeitura em abril, ficamos três meses na rua e foi aqui que conhecemos o dono do imóvel onde moramos hoje. Em troca, cuidamos da lancheria que fica anexa, mas está fechada durante a pandemia — relata Heliton, que é natural de Santa Catarina e estava trabalhando na colheita de maçã, em Vacaria, sendo acolhido pelo abrigo de Caxias do Sul, aberto em função da pandemia.
— Não tinha como pegar ônibus para ir embora, nem como conseguir emprego. Acabei ficando no abrigo, mas não aguentei muito tempo. Tem gente que passa a vida inteira dependendo de Centro POP e abrigo, eu não quero isso. Hoje tenho o meu canto, aos poucos conseguimos comprar algumas coisas para a casa e não precisamos de mais nada, somos felizes com o que temos — afirmou o pedinte, em entrevista concedida na tarde da última segunda-feira (28), no semáforo da Avenida Itália, em frente à Igreja São Pelegrino, no bairro de mesmo nome.
— Somos pelegrinos. Não cobramos nada de ninguém, levamos mensagens bonitas que podem fazer bem às pessoas. Quem pode, colabora. Nem sempre é sobre dinheiro, às vezes um sorriso vale muito mais. Desse mundo a gente não leva nada — completou o entrevistado, que empunhava um cartaz pedindo "por favor, eu e minha mulher precisamos de ajuda. Deus abençoe. Obrigado. Jesus te ama" e diz que pretende começar a distribuir folhetos com mensagens de fé.
Aos motoristas que paravam no sinal vermelho, Fernanda também exibia um cartaz. Este com a frase: "O segredo é ter fé em Deus. Obrigado pela sua ajuda. Jesus te ama". Ela conta que conheceu Heliton no abrigo, onde ficou hospedada no início da pandemia, após um mês vivendo nas ruas de Caxias do Sul.
— Antes eu morava com a minha mãe, mas a gente nunca se deu bem, então resolvi sair. Eu não acreditava em Deus até conhecer ele (Heliton). Muitas pessoas que passam nos ajudam, outras mandam a gente ir trabalhar, mas não adianta dizer isso porque na pandemia não tem oportunidade de emprego — afirma Fernanda.
Uma esmola,
por caridade
No semáforo da Rua Bento Gonçalves, esquina com a Rua Moreira César, no centro de Caxias do Sul, na tarde da última terça-feira (29), um casal também empunhava um cartaz e se apropriava da religiosidade para pedir dinheiro aos motoristas que paravam. Rosângela Sebben, 49, e João Luiz Moises, 48, possuem casa própria no bairro Jardim Iracema e dizem que recorrem ao semáforo quando precisam de recursos para cobrirem custos da Associação Comunitária Peregrino, fundada e mantida por eles há 10 anos, com atividades relacionadas à evangelização e à assistência social. Eles contam que, há quatro anos, percorrem os semáforos da cidade e também de municípios da região. O sustento próprio dizem garantir a partir da venda de artesanato produzido por Moises.
— Recebemos o chamado de deixar nossos empregos e buscar nosso objetivo, que é trabalhar pelos que precisam. Por meio da associação arrecadamos e distribuímos donativos, envolvendo cerca de 200 famílias. Quando a gente vem para o Centro traz roupa e alimento, porque sabemos que sempre podemos encontrar alguém que esteja precisando — afirma Moises.
O casal relata que está prestes a receber a concessão para criação de uma rádio comunitária, projeto que também depende dos recursos obtidos no semáforo e das economias que eles fizeram ao longo da vida.
— Muitos julgam e nem querem saber porque estamos aqui. Quando viemos, não ficamos mais do que três horas. Recebemos elogios e também "xingões". Às vezes a pessoa está chateada com outra coisa e acaba descontando na gente, mas eu não retribuo, procuro ser sempre simpática e agradecer. As pessoas estão doando menos durante a pandemia, mas dá para dizer que a maioria é muito solidária — comenta Rosângela.
(...)
Em toda esquina
tem gente só pedindo
Um levantamento realizado pela Fundação de Assistência Social (FAS) de Caxias do Sul identificou cerca de 20 pessoas que pediam dinheiro em sinaleiras das ruas centrais de Caxias do Sul, utilizando-se de mensagens de apelo expressadas em cartazes. Segundo a instituição, alguns apenas pedem dinheiro, utilizando-se de cartazes — assim como o casal entrevistado pela reportagem — e outros, ainda, encontram na comercialização de itens, como balas de goma, uma forma de disfarçar a mendicância.
— Eles acabam fazendo as duas coisas. Com a goma ou uma rapadura, que seja, eles vendem a ideia de que estão trabalhando. Quando a pessoa se recusa a comprar, eles pedem alguma doação em dinheiro — afirma Júlio Cezar Chaves, diretor do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), uma das frentes de atendimento da Fundação de Assistência Social (FAS).
De acordo com a instituição, que atua em rede para o atendimento especializado às pessoas em situação de vulnerabilidade na cidade, a prática poderia render até R$ 1 mil por semana, sendo adotada como estratégia de renda para o sustento próprio. São pessoas que, eventualmente, recebem auxílios financeiros governamentais, mas que refutam refeições, hospedagem e outros benefícios assegurados pela FAS, preferindo viver em pensões ou mesmo moradias fixas na cidade.
— Ninguém está hoje nos sinais de Caxias do Sul por fome, por necessidade. A nossa cidade não tem histórico de ter pessoas morrendo de fome. Elas acabam indo para praças e sinaleiras para ganhar tudo aquilo que a gente fornece e, na maioria dos casos, para poder continuar consumindo drogas — afirma Chaves.
Segundo o diretor do Centro POP, as pessoas que pedem dinheiro no sinal podem ser, em sua maioria, divididas em dois grupos: artistas, que têm a atividade como escolha e não costumam receber benefícios da FAS, permanecendo por poucos dias na cidade; e pessoas que fazem uso de drogas. Isso sem contar casos isolados, como os de projetos solidários.
Chaves diz que a FAS atua em rede para prestar todo o suporte necessário às pessoas que estiverem em situação de vulnerabilidade, dando diversos encaminhamentos, conforme cada caso. No acolhimento em abrigos, na oferta de alimentação ou cesta básica, no atendimento psicológico, e em todos os outros serviços gratuitos, o diretor afirma que o objetivo principal é garantir a autonomia do usuário, para que ele possa resgatar sua cidadania e tornar-se o mais independente possível.
— Não temos como obrigá-los a deixar a atividade, alguns até nos dizem que preferem permanecer assim, porque ganham bem e não vale a pena procurar emprego. Mas quando a pessoa começa a pedir esmolas, ela perde a cidadania, acaba entrando num submundo. Queremos que todos tenham autonomia com dignidade. Sabemos que Caxias sofreu muito com desemprego, que a situação está difícil, mas a gente pede que as pessoas não deem esmolas para nos deixar agir. Somos especializados neste tipo de abordagem, existimos justamente para isso — completa o diretor.
A campanha "Não dê esmola, promova o resgate da cidadania", lançada pela FAS em agosto, divulga os telefones para contato da rede de assistência municipal, que pode ser acionada de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h, pelo telefone (54) 98403.8864 ou ainda pelo 153, da Guarda Municipal, que atende todos os dias, durante 24 horas.
Uma esmola pro desempregado
Uma esmolinha pro preto pobre doente
Uma esmola pro que resta do Brasil
Pro mendigo, pro indigente
— Deus ajuda tanto a gente, pensamos também em ajudar o próximo — afirmou o motorista Alex Santo Borges, que contribuiu com Rosângela e Moises ao parar no semáforo da Rua Bento Gonçalves, na terça-feira.
— Dependendo da causa, eu ajudo, principalmente se for algo que agregue à comunidade — afirmou outro motorista ouvido pela reportagem no mesmo local, mas que partiu ao abrir o sinal, sem se identificar.
Ele que pede, eu que dou, ele só pede
O ano é mil, novecentos e noventa e tal
Eu "tô" cansado de dar esmola
Qualquer lugar que eu passe é isso agora
Para o cientista político e professor da Área do Conhecimento de Humanidades da Universidade de Caxias do Sul (UCS), João Ignacio Pires Lucas, a "categoria" de pedintes surge a partir de dois contextos principais: socioeconômico e cultural.
Segundo ele, o aumento de pessoas pedindo esmolas em Caxias do Sul acompanha um processo de crise econômica registrado no Brasil, potencializado pela pandemia de coronavírus que, pela primeira vez, atingiu mais profundamente o setor informal.
— As atividades informais têm aumentado diante das exigências do mercado de trabalho formal e do desemprego estrutural. Em outras crises mundiais, a categoria acabava amortecendo os impactos no Brasil. Desta vez, porém, com os riscos que a pandemia representa à saúde de quem trabalha nas ruas, os informais estão sendo bastante prejudicados — explica o professor.
— Este contingente de pedintes, que sequer integra o sistema da informalidade, surge como uma estratégia social de sobrevivência. Um grupo de pessoas que acaba vivendo deliberadamente de esmolas — completa.
O professor observa, ainda, que este tipo de prática acaba colocando o sujeito à margem da sociedade, uma vez que ele não se enquadra em categorias formatadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e outros indicadores, sendo as políticas públicas assistenciais uma forma de recolocar as pessoas nas estatísticas.
— Na minha opinião, depende muito do mercado de trabalho incorporar essas pessoas com dignidade. Se não seguirmos nesse trajeto, cada vez mais as ruas podem ser um atrativo para quem não está apto ou disposto a ser empregado no modelo ofertado — avalia.
Além disso, Lucas entende que a vulnerabilidade nem sempre está atrelada à falta de dinheiro, sendo, por vezes, referente a questões psicológicas, assim como a dependência química, algo que não é novidade no município.
— Nos últimos anos, as pessoas sempre estiveram circulando pelas ruas. O que muda agora é a preocupação das pessoas. Falam sobre a invisibilidade desta população, mas essas pessoas não são invisíveis, a cegueira da sociedade que parece estar diminuindo — conclui.
Eu "tô" cansado, meu bom, de dar esmola
Essa quota miserável da avareza
Se o país não for pra cada um
Pode estar certo
Não vai ser pra nenhum.*
*Trechos de "Esmola" — 1994
Autoria: Francisco Eduardo Amaral / Samuel Rosa