

Meu caro Belchior, no dia 26 de outubro você somou 70 anos de sonho e de sangue e de América do Sul. Onde anda você?, fãs como eu perguntam. Nesse mês do Escorpião, constato que nenhum outro artista da MPB foi tão fiel em sua obra aos temas do signo. Talvez na vida também, haja vista sua opção por mergulhar fundo em outros desejos que não os da maioria, morrendo para o mundo ao preço de vagar por aí de esconderijo em esconderijo.
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Espero que seu coração selvagem esteja em paz, porque devemos muito a você. Em qual disco mesmo havia um escorpião enorme no encarte? Lá nos anos 1970, na rebarba dos sonhos psicodélicos e das propostas de revolução, você chegou nos aferroando com a realidade. Dizia não estar interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia nem no algo mais. Sua alucinação era suportar o dia a dia. Porque viver é melhor que sonhar, não é? Então, na real, como pregar mudanças agora, quando ainda somos e vivemos como nossos pais? Como não sentir tudo na ferida viva do nosso coração, quando a aventura do novo fatalmente vai terminar em casa, segura, contando o vil metal?
Mais angustiado que um goleiro na hora do gol, você nos alertou que o amor é uma coisa mais profunda que uma transa sensual. Que é preciso gozar no céu ou no inferno do amor, porque, na divina comédia humana, nada é eterno. E vinha o seu canto fundo: "Não quero o que a cabeça pensa / Eu quero o que a alma deseja".
É, meu caro, o tempo andou mexendo com a gente. Blindados dentro dos carros e dos escritórios em que ficamos ricos, quanto mais multiplicamos, diminui o nosso amor. Nosso medo já não é de avião. Agora temos medo da vida. Precisamos voltar a te ouvir: "Eu tenho medo e medo está por fora / O medo anda por dentro do teu coração". Precisamos dos teus versos escorpianos: "A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia / E pela dor eu descobri o poder da alegria". E de tua ferroada final: "Eu quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês". Carecemos da tua crua lucidez, Belchior!