Um mês sem sair de casa. Espiando por janelas para ver a luz do sol. O temor constante da morte. Esse é o cotidiano de quem vive hoje na Itália, o país mais atingido pela pandemia de coronavírus. Foram mais de 16,5 mil mortos até agora. E espantosos 132 mil infectados, pela contabilidade oficial do governo italiano, embora a suspeita é de que o número real seja muito maior.
GaúchaZH buscou depoimentos de quatro gaúchos que residem na Itália e de um que teve de voltar, premido pela pandemia. Todos relatam solidão imposta pela clausura, oscilações de humor, saudades dos familiares, o risco de ser xingado, multado e morrer ao sair na rua. Os testemunhos foram dados por WhatsApp:
"As pessoas que morrem não são veladas"
Diogo Rímoli, gaúcho de Porto Alegre, graduado em Português e Literatura pela PUCRS, mudou-se para Roma há quatro anos. Tem cidadania italiana e atua como guia de turismo na Itália, na maioria das vezes para brasileiros. Vive lá com Adriana Menegon Rimolli
"A rotina está completamente alterada. É preciso ficar totalmente dentro de casa. A exceção é para compra de alimentos, farmácia e para trabalhar, se for necessidade básica (segurança pública, saúde, etc). Estou em quarentena desde 28 de fevereiro. Atendia oito turistas de Porto Alegre quando morreu a primeira vítima de coronavírus na Itália. Rodei com eles por outras cidades, como Veneza e Florença. Terminei o atendimento e não saí mais. Minha esposa trabalha num hotel. Fez isso até dia 10, aí está em casa também.
Desde então só saí UMA vez. Literalmente, não abri a porta de casa. Foi em 17 de março, para fazer um rancho. A esposa fez outro rancho, dia 27. E ficamos em casa. Programamos sair de novo só dia 12 de abril. Conseguiria sair, mas optei por não. É perigoso, temos de cumprir nossa parte. E também não incorrer em crime. As multas variam de 400 a 3 mil euros.
As pessoas saem de máscara e luvas por aqui. Quando voltei das compras, botei toda a roupa para lavar e fui para o banho. Passamos álcool nas compras também. O incômodo é grande. Meu serviço está parado, não ganhei um euro com turismo e nem tenho perspectiva nos próximos quatro meses. Eu tenho tentado fazer traduções. A esposa vai receber pelos dias parados.
Conseguiria sair, mas optei por não. É perigoso, temos de cumprir nossa parte.
Velórios e casamentos estão proibidos, algo muito triste. As pessoas que morrem não são veladas. A esmagadora maioria é cremada, sem acompanhamento de familiares. É muito duro. É uma mortandade. Uma em cada três mortes no mundo, por coronavírus, ocorreu na Itália. Sobretudo, na Lombardia.
Assustador também que tivemos 9 mil profissionais da saúde contaminados, quase uma centena deles mortos. O sofrimento das pessoas não tem fim. Em quatro gerações, ninguém viu nada igual, apesar do histórico de guerras.
Com relação a perspectiva, por incrível que pareça, é positiva. A Itália já deu demonstrações. Tiveram de reconstruir o país em outras ocasiões, na Segunda Guerra morreram 500 mil italianos. E a Itália está aí. O primeiro-ministro ordenou injeção de dinheiro nas empresas, para os desempregados."
"O proprietário foi infectado e só ele tem a chave da nossa casa"
O casal Bruno Assmann de Azevedo, 30 anos, natural de Feliz, empresário, e a mulher, Nadini Vacari, 33 anos, natural de Caxias do Sul, também empresária
"Somos viajantes obstinados e há tempos queríamos fazer uma viagem longa pelo Sudeste Asiático, que finalmente foi iniciada em outubro passado. Moramos na Itália, mais precisamente no sul da Lombardia, desde 2017, onde deixamos todas as nossas coisas encaixotadas, carro na garagem e trabalho para trás, para explorar a Ásia por sete meses. A viagem começou em Bali, na Indonésia, e deveria terminar na Índia em maio, mas como tantas outras viagens em todo o mundo foi prematuramente encerrada devido à pandemia do coronavírus. Conseguimos visitar a Indonésia, Macau, Hong Kong, Taiwan, Vietnã, Camboja, Laos, o norte da Tailândia e Mianmar, todos importantes destinos para os milhões de turistas chineses que cada vez viajam mais e em maior número.
Estávamos no Laos, entre o final de dezembro e inicio de janeiro, quando ouvimos falar pela primeira vez sobre o novo coronavírus que surgira na China. De uma hora para a outra as hordas de turistas chineses sumiram, uma vez que o governo chinês proibiu viagens de grupos organizadas por agências para fora do país.
Tudo mudou, entretanto, quando o vírus chegou à Itália e se disseminou rapidamente pelo país. Como viajávamos com os nossos passaportes italianos, pouco a pouco passou a ser um problema apresentá-los na hora de reservar hotéis ou cruzar fronteiras ou para seguirmos com nossos planos de viagem.
É estranho estar numa das cidades mais lindas do mundo e não poder visitá-la.
Entre trancos e barrancos estivemos em Singapura e Malásia e, de lá, abortamos a viagem planejada. No decorrer de todo esse tempo a situação na Itália havia piorado bastante, e mesmo o país tendo se tornado o epicentro da doença no ocidente sentíamos que o melhor era voltar para casa e aí nos refugiarmos. Fizemos contato com a embaixada italiana em Kuala Lumpur e havia um voo de repatriação de cidadãos italianos partindo a Roma dentro de poucos dias. Pusemos nossos nomes na lista e após muita demora e incerteza, regressamos à Itália.
Tivemos de fazer testes para a covid-19 para que pudéssemos embarcar e ainda pagar um valor altíssimo pelo voo em si, mas estamos felizes por estarmos de volta. Decidimos fazer o autoisolamento em Roma, especialmente porque a situação na Lombardia, onde moramos, segue sendo terrível. E porque o proprietário da nossa casa foi infectado e está atualmente hospitalizado em estado crítico - e só ele tem a chave. Além dele, temos diversos amigos e conhecidos que foram infectados ou que têm parentes seus que faleceram por conta do vírus.
Até o dia 8 não podemos sair de casa, e por ora vemos o tempo passar pela janela do quarto. É estranho estar numa das cidades mais lindas do mundo e não poder visitá-la."
"Talvez não tenha leito ou respiradores para salvar nossas vidas"
Ane Casagrande, 41 anos, pedagoga formada pela PUCRS. Mora na Itália desde maio do ano passado e desde julho em Roma, com o marido, Rogério Borges. Uma amiga, Lara Andrade (que também é gaúcha e veio visitar parentes no Brasil) vive drama inverso: não consegue voltar, porque todos os voos foram cancelados. Ane e o marido estão desde 10 de março em isolamento
"Eu não tenho a menor vontade de sair, mesmo estando cansada de ficar só em casa. Só saímos para ir ao supermercado, uma ou duas vezes por semana, no máximo. O medo do contágio é grande. Nós temos, eu e o meu marido, consciência de que se isso acontecer, talvez não tenha leito ou respiradores nos hospitais para salvar as nossas vidas, caso seja necessário.
Além disso (e eu gostaria de salientar essa parte) nós estamos em casa por uma questão de cidadania, em respeito aos médicos e profissionais de saúde que estão travando uma batalha sem limites contra esta pandemia. E, também, em respeito às outras pessoas que estão aqui fazendo sua parte, para acabar com isso o mais breve possível. Para espantar o tédio, assistimos séries e filmes na TV, notícias pelo celular, jogamos cartas, cozinhamos, fazemos videochamada com a família e amigos do Brasil, fazemos ioga...
Estamos em casa por uma questão de cidadania, em respeito aos médicos e profissionais de saúde que estão travando uma batalha sem limites contra esta pandemia.
Com relação às despesas: vim para a Itália em maio do ano passado, para fazer meu processo de cidadania e depois, se tudo desse certo, morar aqui. Foi um projeto que eu e o Rogério planejamos por dois anos, estudando italiano, fazendo economias. O processo ficou pronto no final de fevereiro. Começamos, a partir daí, a procurar emprego. Só que agora, em 10 de março saiu o decreto e tudo parou. Estamos esperando essa situação normalizar para voltar a procurar trabalho. O governo italiano pagará para as pessoas sem renda neste período 300 euros de bônus supermercado (buoni spesa). Estamos estudando aqui como fazer o pedido. A família não está ajudando. Estamos por conta própria.
Aqui em Roma, como em toda a Itália, não se pode sair de casa sem uma autodeclaração, informando qual o motivo da saída: situação de necessidade (como ir ao supermercado, por exemplo), motivo de saúde ou para ir trabalhar (somente para profissões essenciais ou para os profissionais de supermercados e farmácias). Caso seja barrado pela polícia e não tiver como comprovar porque está saindo, recebe uma multa de 206 euros e sofre um processo penal.
Espero que acabe logo tudo isso para, aos pouquinhos, retomar a vida 'normal'. A previsão aqui, segundo estudos estatísticos, se continuar assim, é o governo liberar a população, aos poucos, na metade de maio. "
"Aqui a quarentena não é vista como coisa de ideologia"
Bethina Baumgratz, gaúcha de São Vendelino, fotógrafa de casamentos e de ensaios românticos para turistas que vão à Itália. Mora em Pádua com o marido, o gráfico Daniel Dela Jiustina, também gaúcho. Eles completaram 26 dias de quarentena
"As coisas mudam dia após dia. Tem vezes que acordas bem animado, achando que tudo vai passar logo, simplesmente grato por não ter o vírus, vibe positiva...Em outros, desperta bem desanimado. Aí noutro dia estás entediado, noutros vês que tem um monte de coisas para fazer. Aí vem a revolta, ficas pensando se a quarentena funciona, batem todas as dúvidas.
Mas sempre agradeço por termos uma sacadinha aqui no apartamento. Pego um sol, faço um pouco de exercícios, faço meu chimarrão...Sinto bastante falta do contato com a natureza, de dar uma volta. A gente não pode passear. Em alguns países isso é permitido, como Alemanha e Inglaterra, para fazer algum esporte. Aqui só podes sair se tens um cachorro – até 200 metros da residência - ou filhos. Nesse caso, um pai pega um filho e pode dar uma volta. Não temos filhos e nem cachorro, não podemos sair. Só para ir a mercado, farmácia, correios e bancos (que funcionam apenas em alguns períodos).
Quando sais, tens de preencher uma autodeclaração, para mostrar se te pegam na rua. E tem bastante polícia na rua, muita gente sendo multada. Evito, até porque sempre tem fila, já que não pode encher o mercado de gente.
Lembro que me assustava muito no início, quando carros do governo passavam com alto-falante, mandando ficar em casa. Um toque de recolher. Hoje em dia nem passam mais, todo mundo já entendeu.
Demorou muito para cair a nossa ficha aqui. Lembro que me assustava muito no início, quando carros do governo passavam com alto-falante, mandando ficar em casa. Um toque de recolher. Hoje em dia nem passam mais, todo mundo já entendeu. Tudo que eu tinha marcado até maio foi cancelado ou adiado. Junho em diante mantém, por enquanto. Pedimos que adiem, não cancelem.
Tenho um círculo de pessoas nas redes virtuais, em sua maioria, brasileiros. Aí, na minha bolha, percebo que os italianos estão menos propensos a discussões sobre a quarentena. Veio decreto e eles obedecem. No Brasil virou discussão, umas pessoas super a favor e outras super contra. No Brasil tudo é muito dividido. Se não queres quarentena, és Bolsonaro. Se queres, és 'Globolixo' Aqui a quarentena, me parece, não foi vista como coisa de partido e ideologia."
"Notei que a preocupação em território brasileiro era bem menor"
O jornalista gaúcho Diego Guichard e a namorada Gabriela Loeblein tiveram o caminho e os planos alterados pela pandemia. Ele recém tinha migrado para Fanzolo, no norte da Itália, quando começou o avanço do vírus, justo naquela região. Desde então, peregrinou por diversos países, até se ver forçado a retornar ao Brasil. Aqui, o relato de como a covid-19 o fez adiar os planos de morar na Europa, por enquanto:
"Decidi ir de mudança, tentar a cidadania italiana. Nem se falava de coronavírus. Fomos a Milão em fevereiro, vimos todo mundo de máscara, escolas fechadas. Todo mundo nervoso. Aí decidimos ir a Barcelona (Espanha). Lá ficamos com amigos. Ninguém falava do corona. Aglomerações, eventos, pessoal nem aí, Dia da Mulher uma grande manifestação. Ninguém de máscara.
Dez dias depois, tudo mudou. As fronteiras começaram a fechar. Fomos a Lisboa (Portugal). A partir do terceiro dia, ruas vazias, cartazes de alerta nas ruas, Portugal se mobilizou. Ficamos em hotel. E o euro disparando. O nosso real, derretendo. O clima nas ruas portuguesas ficou de guerra, todo mundo de máscara, nervoso.
Voltei de máscara, mas outros não. Parecia que o Brasil estava importando o coronavírus.
Decidimos voltar para casa. E quem disse que conseguíamos? Esperava madrugada, manhã, tarde e não conseguia passagem. Isso foi de um sábado até uma terça, quando conseguimos vaga num avião. Só que o voo foi bem complicado. Muitas pessoas tossiam. Voltei de máscara, mas outros não. Parecia que o Brasil estava importando o coronavírus. Notei que a preocupação em território brasileiro era bem menor.
Em resumo, nossa ideia era voltar ao longo do ano, tive de antecipar o planejamento. Agora vamos ter de esperar, reavaliar tudo."