É literal este quase clichê: o Reino Unido prepara a "saída honrosa" da União Europeia (UE). Sim, pavimenta-se o caminho de um abandono da UE após a polêmica aprovação do Brexit, a abreviação das palavras em inglês Britain (Grã-Bretanha) e exit (saída), cuja resultado da votação está fazendo um ano nesta segunda-feira, dia 24.
A premier Theresa May, que tenta fechar alianças e conduzir um governo em minoria após recente derrota eleitoral, inicia negociações para o desenlace do que foi aprovado há um ano. De um lado, o desejo britânico de manter o livre comércio com os 27 países do bloco. De outro, o bloco fazendo uma série de exigências.
As negociações estão sendo tocadas pelo ministro britânico específico para o Brexit, David Davis, com Michel Barnier, chefe negociador da UE. O processo, pelas normas do bloco, deve ser concluído em março de 2019.
Em reunião entre os dois representantes na última segunda-feira (as conversações se iniciaram oficialmente em 29 de março, quando May ativou o artigo 50 do Tratado da UE), Davis disse uma frase reveladora, que trai a postura inicial segundo a qual os britânicos seriam enfáticos na separação, respeitando "a voz das urnas":
– Muito mais coisas nos unem do que nos separam.
São palavras que coincidem com o desejo de quem defende o Brexit brando (soft Brexit) e com a fraqueza política de May após a derrota em eleições antecipadas justamente com a ideia de se fortalecer. É grande o contingente de britânicos que desejam a manutenção de acesso ao mercado único e não cogitam a saída do bloco sem acordo dentro de dois anos, como pediram na campanha vários políticos nacionalistas.
Mas as negociações incluem, além do Brexit, temas difíceis como defesa, migração e economia. Indicam processo duro, principalmente porque May se enfraqueceu ao perder, em 8 de junho, a maioria parlamentar: elegeu 318 deputados, quando precisava de 326 assentos para ter metade mais um. Do governo alemão, veio o apoio para que o Reino Unido se mantenha parte do mercado único, mas apenas se aceitar a livre circulação de trabalhadores e a jurisdição do Tribunal de Justiça da UE (May resiste, muito em especial, a este segundo ponto).
Os principais temas da pauta são os direitos dos cidadãos mais afetados pelo Brexit (3,2 milhões de europeus em solo britânico e 1,2 milhão de britânicos em território da Comunidade, em sua maioria na Espanha) e o ajuste da "conta do divórcio" (dinheiro que o Reino Unido comprometeu com os demais sócios e que deve desembolsar antes de abandonar a UE). De promissor, há o fato de que Londres acatou calendário e prioridades europeias.
Mudanças que devem ocorrer no cotodiano
A semana em que as negociações se iniciaram na prática terminou assim: May oferecera na quinta-feira que os 3,2 milhões de europeus vivendo no Reino Unido não sejam obrigados a deixar o país no momento da separação e que quem viveu no país por cinco anos tenha os mesmos direitos concedidos aos cidadãos britânicos. Mas líderes do bloco econômico disseram na sexta que a proposta não é o bastante.
– Este é um primeiro passo, mas não é o suficiente – disse, em pronunciamento, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, enquanto o premier belga, Charles Michel, definia a proposta como "vaga" e o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, dizia que está "abaixo das expectativas".
A maioria dos dirigentes definiu o começo das negociações como satisfatório, mas ressalvaram ser necessário ainda muito diálogo para a lapidação de uma saída britânica satisfatória. A visão dos 3,2 milhões de cidadãos do bloco parece, porém, ser menos complacente. Em entrevista para a agência de notícias France Presse (AFP), Joan Pons, enfermeiro espanhol e líder da associação The 3 Million, criada por cidadãos europeus após o triunfo do Brexit (e que quer manter os direitos atuais), definiu a oferta de May como "ridícula".
Nicolas Hatton, fundador do movimento, usou a palavra "patético" para definir a proposta.
– Estão brincando com as nossas vidas – criticou.
O escritor e historiador português Rui Tavares antevê o Reino Unido mergulhado, futuramente, em "vários anos" de reflexão sobre a forma como se dará o Brexit. E critica a demora para o começo do processo:
– Theresa May, adiou esse gesto durante praticamente um ano. Uma vez finalmente acionado o artigo 50 do Tratado da UE (que prevê o desfecho do processo em dois anos), quando se esperava que as negociações começassem, ela fez uma coisa que prometera várias vezes não fazer: convocou eleições antecipadas. Durante esses meses, inclusive durante a campanha eleitoral, não houve debate público sobre o que aconteceria nas negociações do Brexit. Mas o relógio está correndo. No dia 30 de março de 2019, o Reino Unido estará fora da UE.
Caso o prazo se encerre sem acordo, há chance improvável de que os negociadores aceitem uma prorrogação. O mais provável é que, em quaisquer circunstâncias, esteja rompido nessa data o principal pilar da UE, que é a "confiança e o reconhecimento mútuo". Ou seja, o que um país decide vale para os outros. Na prática, isso quer dizer que, por exemplo, caminhões britânicos que levem produtos até a fronteira dos antigos parceiros de bloco terão de parar para ser fiscalizados, diferentemente do que ocorre hoje.
O cientista político espanhol José Ignacio Torreblanca lamenta essa possibilidade:
– Estamos vivendo um fracasso coletivo. A UE sempre teve, até aqui, grande capacidade de acomodar as idiossincrasias nacionais, e o maior exemplo são os 44 anos do Reino Unido no bloco, em que até se excluiu do euro e adotou políticas sociais e de segurança próprias. É uma pena.
Pedras no caminho:
Cerca de 3,2 milhões de cidadãos do bloco europeu vivem em solo britânico, enquanto cerca de 1,2 milhão de britânicos moram na UE. As garantias para os cidadãos europeus são parte fundamental das negociações do Brexit.
A jurisdição do Tribunal de Justiça da UE deve, conforme as autoridades do bloco, ser aceita pelo Reino Unido após o Brexit. A premier Theresa May resiste muito em especial a essa imposição, vista pelo organismo como essencial.
As dívidas dos britânicos são altas. A chamada "conta do divórcio" chega a algo como R$ 200 bilhões, de acordo com algumas estimativas São investimentos bancários e financiamentos, de pessoas físicas e principalmente jurídicas.
Curiosidade:
Há mais de 400 jogadores de futebol estrangeiros que atuam em alguma das divisões de Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Como ficariam? Em tese, perderiam o direito de jogar no Reino Unido, porque jogadores que possuem passaporte europeu poderiam jogar livremente no Reino Unido, mas aqueles que não dispõem de um teriam de conseguir licença de trabalho outorgada pelo Ministério
do Interior britânico.