O cenário tranquilo, de um silêncio quebrado apenas pelo trem que passa na ferrovia paralela à Old Concord Road, arredores de Charlotte, esconde uma tragédia que reacendeu a tensão racial nos Estados Unidos. Entre árvores centenárias usadas como trampolim por esquilos, teve início uma das maiores crises sociais enfrentadas pelo presidente Barack Obama, que deixa o poder em 20 de janeiro.
Em setembro passado, foi morto aqui Keith Lamon Scott, 43 anos, negro, em uma ação até hoje não esclarecida pela polícia. A família diz que Keith estava dentro do carro, estacionado em frente à residência, esperando pelos filhos, que chegariam da escola. Policiais entraram no condomínio College Downs Village para cumprir mandado de prisão contra outro suspeito. Os agentes alegam que Keith estava armado e os ameaçou. Houve briga. A cena, os tiros e a morte foi gravada pela mulher da Keith, Rakeyia. O vídeo, postado na internet, gerou uma onda de manifestações violentas que sitiou Charlotte por vários dias. O governo declarou estado de emergência, e a Guarda Nacional interveio.
Nesta sexta-feira, Zero Hora visitou o College Downs Village, onde morava Keith. Na casa da família, uma residência geminada, de dois andares, em um dos contornos da área de estacionamento comum, não havia ninguém. Era por volta de 12h, e todo o condomínio parecia pouco habitado a um primeiro olhar. Avistei dois moradores. Um deles, a quatro casas da residência de Keith, pediu para não ser identificado. Disse apenas que "a morte não foi em vão".
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– Foi importante porque despertou a todos para o problema da violência da polícia. Eles (os agentes) chegam mostrando força. Não agem assim com todo mundo. Agem assim porque somos pobres e negros – afirmou.
Outro morador, que retirava caixas de leite da caminhonete, disse que todos ali votaram em Obama nas eleições de 2008 e de 2012. Mas, na disputa atual, ele não se sente motivado a votar:
– Sei que não é culpa dele (de Obama), mas pouco foi feito nesses últimos anos.
Nem todos inocentam Obama: eleito primeiro presidente negro da história dos EUA, o democrata, com longa carreira como líder comunitário nos guetos do sul de Chicago, carregava nas costas a expectativa de milhões de pessoas que esperavam compromisso maior com a questão racial. Keith, o negro assassinado pela polícia em Charlotte, não é caso isolado. Segundo levantamento do jornal The Washington Post, só em 2016, 702 pessoas morreram por tiros disparados por policiais nos EUA – desses, 321 são brancos, 172, negros e 111, de origem hispânica. Apesar do maior número de vítimas de pele branca, os negros, proporcionalmente, são as maiores afetados. Segundo levantamento do Mapping Police Violence, ONG que monitora o problema em território americano, negros têm até três vezes mais chances de serem mortos por policiais do que brancos.
Alçado a principal cabo eleitoral da candidata democrata, Hillary Clinton, Obama desembarcou nesta sexta-feira na Carolina do Norte, onde 22,5% da população é negra. Em outubro, a primeira-dama, Michelle, apareceu pela primeira vez ao lado de Hillary também aqui no Estado. Próximo ao palco montado na Universidade da Carolina do Norte, onde Obama discursaria à noite, e a 10 minutos de carro do condomínio onde Keith foi morto, as urnas estão abertas – o voto antecipado é possível nos EUA. Por volta das 13h, havia fila. Eleitores demoravam, em média, 30 minutos. O estudante de Comunicação Christian Reinhardt, 22 anos, e a colega Jada Frye, também de 22, aproveitaram o intervalo das aulas para registrar seu voto.
– Voto em Hillary e votei em Obama – diz Jada, aluna de Educação, que lamentava não ter conseguido convite para o evento com o presidente.
Mais crítico, Christian afirma que tanto Hillary quanto o republicano Donald Trump não são os ideais.
– Nenhum tem conhecimento suficiente para ser presidente – lamenta. – Mas Hillary tem mais condições, vai fazer mais pelos jovens, pelas crianças e pelo sistema de saúde – explica.