O presidente uruguaio, José Mujica, utilizou no último domingo a expressão "laudado", em espanhol, para dizer que o acolhimento de prisioneiros de Guantánamo está "decidido".
Trata-se de uma tradução literal que deixa margem a interpretações. A principal delas: o que Mujica pretende? Interlocutores do presidente ouvidos por Zero Hora dizem que ele segue a linha humanista que alçou o Uruguai a "país do ano" em 2013, em razão de avanços como casamento homoafetivo e regulação de produção e venda da maconha. No caso de Guantánamo, prisioneiros vivem em situação precária, sem acesso a advogados ou a um julgamento.
De diferente, agora, está o voo internacional que Mujica dá, cacifando-se como referência sul-americana no vácuo deixado por um Itamaraty de perfil discreto nos últimos anos. Não é a primeira das suas iniciativas nessa linha. Mujica ofereceu Montevidéu como sede para os diálogos de paz entre o governo colombiano e a segunda principal guerrilha do país, o Exército de Libertação Nacional (ELN). Depois, ele se pôs à disposição para mediar o acordo entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a principal guerrilha, nas tratativas que ocorrem em Havana. Mais recentemente, prontificou-se a aproximar governistas e oposicionistas venezuelanos na crise vivida pelo país, criticando os dois lados ao dizer que democracia implica aceitação do diferente.
Um dos seus assessores, ressalvando não falar pelo presidente, comentou que as intenções de Mujica são humanitárias. Ainda assim, admitiu que uma consequência é a consolidação como líder internacional, meses depois de ter se tornado candidato ao Nobel da Paz de 2014. O próprio Mujica cogitou ser recompensado pelos Estados Unidos e até sugeriu que presos cubanos em cárceres americanos poderiam ser soltos a seu pedido - o que aumentaria ainda mais seu protagonismo internacional. Haveria a possibilidade remota de Mujica se encontrar em 12 de maio com o presidente americano, Barack Obama. Independentemente disso, estão em pauta a abertura dos EUA para a carne ovina com osso uruguaia, a intensificação de intercâmbios, facilidades para aquisição de visto e a candidatura uruguaia para o Conselho de Segurança da ONU.
Reunião tranquilizadora
Mas a pergunta sobre o significado da medida continua pendente. Tem sido feita por oposicionistas e por representantes da comunidade judaica, apreensivos com a possibilidade de os presos serem vinculados ao terror. Diego Cánepa e Homero Guerrero, secretários da presidência e interlocutores de Mujica, trataram de ir ao encontro do presidente do Comitê Central Israelita, Sergio Gorzy, para lhe dizer que os cinco presos, quatro sírios e um palestino, "não são perigosos".
- Há quatro meses, o presidente Mujica recebeu um pedido dos EUA. Ele ficou 14 anos preso durante a ditadura. Sua motivação é humanitária. Ao decidir trazê-las, fomos informados de que essas pessoas, que chegarão como refugiadas, não são perigosas - afirmou Cánepa a ZH.
- Saí da reunião mais tranquilo - disse Gorzy, que estava acompanhado do secretário da instituição judaica, Gerardo Stuczynski, no encontro de uma hora.
Três integrantes da organização judaica B'Nai B'rith se encontraram com a embaixadora americana em Montevidéu, Julissa Reynoso. Também receberam explicações tranquilizadoras.
Cánepa assegura que o processo de triagem dos presos foi feito de forma rigorosa, mas adiantou que detalhes do acordo serão mantidos em sigilo. Contou que há "mais de 200 refugiados" (são 203) no Uruguai e que suas identidades vêm sendo tratadas com sigilo. Muitos deles são ex-guerrilheiros colombianos ameaçados por grupos rivais, por exemplo. A respeito da declaração do presidente quanto a outros casos similares em 18 países (43 presos de Guantánamo já seguiram para países que não são os seus de origem), inclusive latino-americanos, Cánepa ponderou:
- Não creio que o Brasil seja um deles.
Oposição pede explicações
Os esclarecimentos ainda não convenceram a oposição. Ex-chanceler e hoje senador pelo Partido Nacional, Sergio Abreu pediu à Comissão de Defesa que chame a chancelaria e o Ministério da Defesa a se explicar.
- Dizem que não são perigosos, mas por que ficaram mais de 10 anos presos naquelas condições em Guantánamo e por que os EUA querem repassá-los? Isso preocupa, e é claro que o presidente tenta ganhar espaço internacional - disse Abreu. - Nosso presidente é muito criativo. Não tenho ideia de onde ele quer chegar com essa medida.
Senador governista, amigo de Mujica e seu ex-ministro da Defesa, Luis Rosadilla pediu, meio ano atrás, que o presidente tomasse a atitude de receber os presos.
- O presidente age como o grande ser humano que ele é. Não quer vantagem para o Uruguai. Pensa na humanidade. Talvez as pessoas não entendam isso. E é claro que fomos informados, claro que sabemos que essas pessoas não representam perigo - disse ele.
O ministro da Interior, Eduardo Bonomi, inteirou-se de que os presos são inofensivos ao conversar com a embaixadora americana, que mencionou uma lista de prisioneiros "transferíveis" - dos 154 presos em Guantánamo, 78 são considerados de alta periculosidade. Bonomi adiantou que as exigências são as de que aprendam espanhol e se integrem à sociedade pelo período de ao menos dois anos em que ficarão no país.
Na fronteira entre Brasil e Uruguai, mais precisamente no Chuí, está a maior comunidade islâmica brasileira, de acordo com dados do censo de 2010.