Depois do golpe militar de 1973 no Chile, o poeta vencedor do Prêmio Nobel, Pablo Neruda, foi encontrado morto. Embora se acredite que tenha sido por causa de um câncer de próstata, as suspeitas de envenenamento fizeram um juiz ordenar a exumação de seus restos mortais.
Naquele mesmo ano, soldados na República Dominicana executaram o líder guerrilheiro e ex-presidente Francisco Caamaño. Seus restos mortais foram exumados há pouco tempo, muito provavelmente para elevá-lo ao panteão dos heróis do país.
Os fantasmas também se agitam no Brasil, onde as autoridades avaliam as alegações de que dois ex-presidentes, João Goulart e Juscelino Kubitschek, teriam sido assassinados em 1976. Sem provas, os investigadores afirmam que em breve exumarão o corpo do primeiro para saber se foi envenenado e o do motorista do segundo para confirmar se foi a bala de um atirador que causou o acidente de carro que matou a ambos.
Aos poucos, os países da América Latina vão adotando a mesma medida, reflexo não só da dificuldade de algumas figuras políticas em encontrar paz no pós-vida, mas do desejo da região de reabrir questões não resolvidas e disputas sobre seus fatos históricos, mesmo que para isso tenham de desenterrar o passado, literalmente.
- Onde a história não está definida nem bem aceita, a voz dos mortos continua a ser ouvida -, afirma Lyman Johnson, professor emérito da Universidade da Carolina do Norte que explora a nova tradição da América Latina.
Em certos casos, os observadores têm se mostrado até assustados, como em 2010, o então presidente venezuelano Hugo Chávez televisionou o desenterramento de Simón Bolívar, herói revolucionário que lutou contra a colonização espanhola, em uma tentativa malsucedida de provar que foi envenenado com arsênico pelos oligarcas colombianos. Os historiadores ainda concordam, em geral, que foi a tuberculose que o matou.
Outras medidas atraem menos atenção, como a decisão do Equador, em 2007, de transferir as cinzas de José Eloy Alfaro, ex-presidente decapitado, desmembrado e queimado pela multidão em 1912, da cidade de Guayaquil para um monumento em sua cidade natal, Montecristi.
O ciclo atual revela um padrão que ocorria nos primórdios da região: a tradição de desenterrar os restos mortais de gente famosa e submetê-los a um exame intrusivo, sempre alegando que o exercício era de cunho político.
Alguns centros onde a prática sempre foi uma verdadeira febre, como o México, se aquietaram, mas nos anos 20, seus líderes exumaram participantes da Guerra da Independência, colocando-os em um mausoléu. Encerrou-se de vez também o frenesi que tomou conta do país na década de 40, na disputa pelos restos mortais do líder asteca Cuauhtémoc e o conquistador espanhol Hernán Cortés.
Agora outras nações, com o Chile em destaque, parecem retomar a tendência. Salvador Allende, o presidente deposto por um golpe em 1973, foi exumado em 2011 para confirmar se tinha se suicidado ou foi morto pelos adversários que invadiram o palácio presidencial. A conclusão foi a de que ele se matou com um fuzil de assalto AK-47, confirmando a versão oficial.
Em 2004, também no Chile, foi a vez de Eduardo Frei Montalva, presidente de 1964 a 1970. E as descobertas foram tão extraordinárias que encorajaram novos procedimentos, tanto no país como em outros lugares. Embora os médicos a princípio tivessem dito que Frei Montalva morrera em 1982 de complicações de uma cirurgia de estômago, a investigação concluiu que ele foi envenenado com pequenas doses de gás mostarda e tálio, um metal pesado altamente tóxico.
Entretanto, a região não é a única a desenterrar figurões políticos ou intelectuais, como foi o caso, em 2012, do líder palestino Yasir Arafat, também para confirmar seu envenenamento. A Espanha seguiu o mesmo caminho para tentar encontrar os restos mortais do poeta Federico García Lorca e outros mortos durante a Guerra Civil.
Seja para resolver mistérios da morte ou promover histórias de heroísmo, nos países latino-americanos remexer nos mortos e às vezes até mutilar seus restos sempre fez parte do cenário político. Os acadêmicos dizem que a prática pode ser a continuação secularizada de um costume do início do cristianismo, quando havia um verdadeiro comércio envolvendo partes dos cadáveres dos santos.
O Brasil, maior país da região, também tem lá seus precedentes, incluindo o transporte de restos através do Oceano Atlântico para reforçar a narrativa de sua emergência como nação independente. Na década de 30, o regime autoritário de Getúlio Vargas recolheu os corpos dos Inconfidentes, participantes do movimento separatista no século XVIII, que tinham sido enterrados na África, onde tinham morrido em exílio, para reenterrá-los em Minas Gerais.
E em 1972, o governo militar exumou em Portugal Dom Pedro I, o primeiro imperador de um Brasil independente, transferindo seus restos para um monumento em São Paulo. (Curiosamente a operação não incluiu seu coração, que permanece em uma igreja do Porto, em Portugal, como pedia seu testamento.)
Ele foi retirado de sua cripta imperial novamente este ano, como objeto de estudos científicos que refletem os avanços na análise bioquímica e nos testes de DNA. O mesmo método será usado para resolver mistérios mais recentes, como no caso de Goulart, presidente deposto pelo golpe de 1964 com a benção dos EUA.
Com base no depoimento de um ex-agente da inteligência uruguaia, sua família alega que ele não morreu em exílio na Argentina, aos 58 anos, de enfarte, como foi dito em 1976, mas sim envenenado pelo pessoal da Operação Condor, uma operação conjunta das ditaduras militares sul-americanas em vigor durante os anos 70 e 80, responsável pelo sequestro e morte de incontáveis dissidentes políticos.
- Tudo nos leva a crer que ele foi assassinado - , diz João Vicente Goulart, seu filho. - Só precisamos da prova -.
A Comissão da Verdade, que investiga as violações cometidas durante o período de ditadura no Brasil está se preparando para exumá-lo, iniciativa que tem o apoio até daqueles que não concordam com a teoria de que ele foi envenenado.
- Seus restos mortais têm que ser examinados, sim, nem que seja para acabar com as teorias de conspiração e permitir que ele descanse em paz - , afirmou Iberê Athayde Teixeira, escritor de São Borja, cidade em que o ex-presidente está enterrado.
Assim como as experiências recentes no Chile, algumas das novas exumações no Brasil, embora baseadas em disputas políticas históricas, têm uma característica diferente daquelas feitas décadas atrás.
- Trata-se de um regime democrático que finalmente, depois de muito tempo, está aceitando seu passado - , explica Kenneth Maxwell, colunista da Folha de São Paulo. - O objetivo não é a criação de mitos, mas sim uma tentativa de revelar o que muitas vezes se mostrou um histórico medonho .-
América Latina
Mortes suspeitas geram onda de exumação de corpos de personalidades latino-americanas
Países estão adotando a medida para compreender os fatos históricos
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