Todas as manhãs antes de amanhecer, Mujeeb Hamdard desperta na casa cercada de lama onde vive no leste de Cabul, e inicia a sua jornada na direção de onde ele se sente mais em casa.
Após um trajeto curto, porém turbulento, de ônibus nas estradas sufocadas e caóticas dentro da cidade, ele chega: o quartel militar das Forças de Coalizão no Afeganistão. Então, ele começa a trabalhar como ambulante.
Desde que tinha seis anos, Hamdard vende mercadorias baratas para os ocidentais que se acostumaram tanto a vê-lo nos últimos 12 anos que eles frequentemente deixam presentes e mercadorias de graça.
Aos 18 anos, ele é o diretor do corpo de ambulantes, um grupo colorido de crianças situadas fora da base, vendendo lenços, chapéus, mapas e livros quase todos os dias, exceto quando são expulsos pela polícia - às vezes, violentamente.
Eles se reúnem no cruzamento em forma de T perto dos portões do complexo da Força Internacional de Ajuda a Segurança (ISAF, sigla em inglês), um labirinto militar empoeirado cercado por muros a prova de explosões feitos de concreto com 6,1 metros de altura e barreiras de retenção. As crianças alternadamente brincam e trabalham nas ruas, dependendo do tráfego. Algumas vezes por dia, pequenos grupos de soldados em armadura completa passam.
De uma maneira, eles são um grupo de elite, com acesso ao fluxo mais estável de ocidentais, e ao o dinheiro deles, no país. Mas a existência deles é frágil: eles sabem que o nicho que eles criaram para si é tão fugaz quando a presença de coalizão na qual eles confiam. Um dia de repente isso desaparecerá, assim como os muros a prova de explosões e os resíduos de guerra restantes.
- Gosto mais daqui do que gosto de casa - Hamdard explicou - Quando estou em casa, eu sinto falta desse lugar.
O membro do clube favorito de Hamdard é Medina, uma menina de 10 anos de olhos verdes e sorriso constante. Ela frequenta o local com suas duas primas mais novas, Fátima e Breshna. As meninas usam mochila de livros coloridas cheias de mercadoria.
- A minha família não está feliz, porque sou menina e eu não deveria estar nas ruas - disse Medina, chutando a estrada pavimentada cheia de poeira e ajustando o seu chapéu do time Texas Longhorns.
Alguns dos pais das crianças desencorajam-nos de ir ao complexo ISAF, sabendo que o local é um alvo. Mas as crianças os ignoram.
- Você fica aqui, e a bomba explode, e você explode! - disse Breshna, de oito anos, a mais nova do grupo, caindo na risada.
As meninas pirraçam os meninos sem misericórdia, às vezes, jogando pedras nos mais novos em uma aparente subversão à ordem de gênero que prevalece no Afeganistão. Em uma tarde, as meninas ridicularizaram outro jovem e incrustado de sujeira da equipe, Baseer, enquanto ele respondia às perguntas de um repórter.
- O pai dele fuma haxixe - brincou Fátima, levando os dedos aos lábios e puxando ar em um gesto simulando fumar. Ela então pegou algumas pedrinhas para jogar tanto em Baseer quanto no repórter.
As ruas de Cabul estão cheias de crianças trabalhando, vendendo de tudo, de frutas a orações, à beira das estradas acidentadas da cidade. Mas a esquina da ISAF é mais lucrativa.
As crianças admitem que o dinheiro os mantém afastados da escola, mas eles cabulam com a bênção e, às vezes exigência, dos pais. Eles utilizam o dinheiro - até 20 dólares por dia para alguns - para sustentar as suas famílias.
Ocasionalmente, eles sentem o impulso de serem crianças normais. Outro dia, meninos trajando elegantes uniformes de cor azul passaram pelo grupo retornando para casa da escola próxima ao prédio. Os dois lados cuidadosamente se ignoraram mutuamente.
- Às vezes, eu queria poder ir à escola e não trabalhar - Hamdard disse, mexendo no seu chapéu preto que ele usa para bloquear o sol - Mas não tenho essa oportunidade. Tenho de trabalhar. Acho que eles têm muita sorte.
Todas as crianças falam algum tipo de inglês, tendo aprendido a língua durante o trabalho delas perto da ISAF. Os soldados e colaboradores os ensinaram algumas gírias esquisitas, como "quebrar uma", o que interrompe os transeuntes.
Os ocidentais entram em várias categorias aos olhos das crianças. Os italianos, eles dizem, sovinas, e às vezes maus. Os americanos, dizem, são os mais generosos, entre os quais, eles particularmente gostam dos afro-americanos porque eles doam mais frequentemente.
- Acho que os negros são ricos - Baseer disse.
Como um sinal, um colaborador chamado James passou, e as crianças o chamaram. Ele lançou um sorriso e avisou para elas se comportarem. Elas correram até ele, e ele se dirigiu a todas elas por nome. Ele se inclinou para dar um tapinha na cabeça de Breshna, e lhe perguntou sobre um arranhão no nariz.
- Esta sempre aparece com cortes e arranhões - disse James, que solicitou que não fosse identificado pelo sobrenome porque a ISAF recomenda que os seus funcionários e colaboradores não falem com as crianças.
James compra material escolar deles, batata frita e refrigerantes, escolhendo os bens que ele recebe dos outros em pacotes de mantimentos.
- Elas nem sempre vão à escola e, às vezes, elas roubam, mas são crianças muito boas - disse - Crianças são crianças não importam onde estão.
Como outras crianças, elas são sensíveis. Elas levam o desprezo como algo pessoal.
- Você me chama de ladra? Fátima, a mais irritada da equipe, gritou - Quando me viu roubar?
James a ignorou. Ela pegou uma garrafa grande de coca que ele dera a Baseer mais cedo no dia e empurrou na direção do colaborador. Ele se recusou a pegar de volta. Ela então caminhou até uma poça e derramou a garrafa inteira no poço de lama, a espuma grossa marrom surgindo da terra quebradiça.
Por trás da sensibilidade, porém, há um duro cinismo, nascido de anos de Guerra e da perda que a acompanha: amigos mortos, família perdida para o desespero, rejeição reiterada e a crueldade da polícia.
As crianças recebem os dias como chegam, aproveitando o pequeno oásis de oportunidade enquanto existe. Quando ele se for, as crianças dizem que irão também com ele.
- Se eu não sintirei falta nem mesmo do meu pai quando ele se for, como sentirei falta deste lugar? - disse o sorridente Hamdard, cujo pai deficiente precisa dele para o sustento.
Outra noite, a polícia expulsou as crianças do semáforo, liberando o caminho para as autoridades afegãs partirem. Hamdard apenas teve permissão de ficar, tendo conquistado um pouco de confiança. As crianças se espalharam pela rua, exceto Medina, que se escondeu em uma fenda das barreiras de concreto que cercam a estrada.
Quando foi descoberta, Hamdard interveio, persuadindo o agente a permitir que ela ficasse. Os dois se posicionaram em uma plataforma vermelha e branca à beira da estrada. Uma torre de vigilância enorme emergia acima.
O tráfego desacelerou perto do posto de verificação. Alguns colaboradores passaram, usando roupas civis e com mochilas nas costas, mas as pessoas que partiram para casa eram predominantemente afegãs.
- Estão partindo - Medina observou, refletindo sobre a presença americana mais ampla enquanto movia o seu lenço com as cores do arco-íris. - Eles vieram da América até aqui para apoiar os afegãos, mas quando os vemos aqui, estão escondidos.