Quando um furacão forçou o Nautilus a mergulhar em "Vinte Mil Léguas Submarinas", de Júlio Verne, o Capitão Nemo levou o submarino a uma profundidade de 25 braças, ou 46 metros. Lá, para o espanto do protagonista do romance, o Professor Pierre Aronnax, não se ouvia nenhum sussurro de turbulência.
"Que tranquilidade, que silêncio, que paz!", exclamou ele.
Era 1870.
Hoje - para o desespero dos amantes de baleias e amigos de mamíferos marinhos, se não também para mergulhadores e capitães de submarinos - as profundezas do oceano se tornaram um lugar muito barulhento.
As causas disso são humanas: explosões de sonar de exercícios militares, o estrondo de pistolas de ar utilizadas na exploração de petróleo e gás e o ganido de frotas de navios comerciais que cruzam os mares do mundo implacavelmente. A natureza tem seus próprios ruídos submarinos. Mas os novos barulhos são altos e onipresentes.
Especialistas marinhos dizem que esse crescente clamor é particularmente perigoso para as baleias, que dependem da sua audição aguçada para localizar alimentos e umas às outras.
Para combater o barulho, o governo dos Estados Unidos está completando a primeira fase do que pode se tornar uma das maiores iniciativas mundiais para conter a poluição sonora e fazer com que esse amplo ecossistema retorne a um estado mais tranquilo.
Não se trata de uma ambição pequena: o mar cobre mais de 70 por cento da superfície do planeta. Mas os números verificados nas visualizações do oceano já vieram a público.
A iniciativa americana procura documentar ruídos produzidos por humanos no oceano e transformar os resultados nos primeiros grandes mapas de sons do mundo. As visualizações do oceano usam cores chamativas para simbolizar os sons que vêm das profundezas oceânicas, frequentemente a distâncias de centenas de quilômetros. Vários dos mapas maiores apresentam os dados dos sons em médias anuais - demonstrando como as épocas em que os seres humanos praticamente não interferiram nos ruídos submarinos estão dando lugar ao rugir da civilização.
O objetivo do projeto é entender melhor a natureza do ruído e seu impacto sobre os mamíferos marinhos, assim como ajudar a consubstanciar as reduções.
- É um primeiro passo - disse Leila T. Hatch, bióloga marinha e uma das pessoas que dirigem o projeto, a respeito dos mapas de sons. - Ninguém nunca fez algo assim nessa escala.
A Administração Nacional Oceânica e Atmosférica deu início ao projeto em 2010, a mando de Jane Lubchenco, renomada bióloga marinha e primeira mulher a dirigir a agência. Hatch e seus colegas reuniram uma equipe de especialistas em sons, incluindo a HLS Research, uma consultoria de La Jolla, Califórnia. No último verão do Hemisfério Norte, eles, assim como outra equipe de especialistas que procurou mapear o paradeiro de populações de baleias, golfinhos e botos, divulgaram na Internet os resultados obtidos.
Michael Jasny, analista sênior de políticas do Conselho de Defesa de Recursos Naturais, um grupo privado de Nova York que processou a Marinha dos Estados Unidos com o objetivo de reduzir ruídos que podem prejudicar mamíferos marinhos, disse que os mapas são "magníficos" e as representações da poluição sonora que foram registradas são "incrivelmente perturbadoras".
- Nós estávamos cegos em relação a esse problema - disse Jasny em uma entrevista. -Os mapas têm possibilitado que cientistas, o reguladores e o público visualizem o problema. Depois de ver as fotos, torna-se impossível ignorar o sério risco que os ruídos do oceano representam para o próprio tecido da vida marinha.
Juristas dizem que as novas descobertas devem acelerar os esforços de enfrentamento desse complicado problema em âmbito nacional e internacional, por meio de leis, regulamentos, tratados e reduções voluntárias de ruídos.
O governo já tem alguma autoridade para regular os sons oceânicos nas águas dos Estados Unidos por meio da Lei das Espécies Ameaçadas e da Lei da Proteção de Mamíferos Marinhos, embora haja isenções dessas leis para as forças armadas.
A Organização Marítima Internacional, um órgão das Nações Unidas responsável por melhorar a segurança marítima e reduzir a poluição de navios, também tem autoridade para estabelecer padrões acústicos.
Nos últimos anos, incentivada pelos Estados Unidos, a entidade começou a discutir maneiras de viabilizar reduções voluntárias de ruídos.
Como muitos navios comerciais são registrados no exterior e a maioria dos ruídos emitidos por navios se origina em águas internacionais, o apoio da organização é visto como crucial para que as reduções sejam suficientemente substanciais.
- No momento, estamos falando de diretrizes não obrigatórias - disse Michael Bahtiarian, conselheiro da delegação da organização marítima nos Estados Unidos e oficial sênior da Noise Control Engineering, uma empresa situada perto de Boston, especializada na redução de vibrações e ruídos emitidos por navios. - No mínimo, o objetivo é impedir que a poluição sonora aumente.
Biólogos marinhos associaram os ruídos humanos a reduções na vocalização de mamíferos, o que sugere quedas nos índices de alimentação e reprodução.
Ainda pior é o fato de a Marinha dos Estados Unidos estimar que as explosões de seus sonares - usados em treinamentos e na localização de submarinos inimigos - resultem em perdas auditivas permanentes para centenas de mamíferos marinhos todos os anos, além de perdas temporárias para milhares deles. No total, o número de animais prejudicados anualmente chega a mais de 250 mil.
A pesquisa federal sobre os sons examinou todos esses ruídos, mas se concentrou nos navios porque eles representam uma ameaça contínua, ao contrário dos estrondos esporádicos. No caso da navegação no Atlântico Norte, o projeto traçou mais de duas dezenas de mapas. Todas as suas escalas iam de vermelho (máximo de 115 decibéis) para laranja e amarelo, e depois para verde e azul (mínimo de 40 decibéis). O mapa apresentou os resultados em termos de médias anuais, e não em máximas.
Um decibel é uma medida de ruído, e os níveis subaquáticos máximos podem ser extremamente altos. Quando acompanhados por um hidrofone a uma distância de um metro, uma arma sísmica produz 250 decibéis; um petroleiro, 200 decibéis; e um rebocador, 170 decibéis, de acordo com Bahtiarian.
A fim de elaborar seus mapas anuais, o projeto utilizou computadores para estabelecer uma média desses picos ao longo do tempo, bem como para reduzir lentamente os ruídos que viajam pela imensidão do oceano. O estudo também optou por modelar as baixas frequências utilizadas na audição e vocalização dos mamíferos marinhos, além de ter monitorado o alcance da penetração dos sons.
Os mapas do Atlântico Norte mostram principalmente áreas de cor laranja nas águas de superfície, mas muitas de cor azul aparecem quando regiões a um quilômetro de profundidade são mapeadas. Nessa profundidade, os mapas de sons mostram claramente a capacidade que a Dorsal Mesoatlântica - uma cadeia de montanhas que percorre o meio do oceano - tem de diminuir os ruídos que se disseminam, graças à quebra de padrões de ondas sonoras.
Segundo a Dra. Hatch, muitas áreas da superfície do oceano (onde os mamíferos marinhos e baleias passam a maior parte do tempo) são de cor laranja, denotando níveis médios elevados.
- É como o centro de Manhattan durante o dia, se não levarmos em conta as ambulâncias e as sirenes - disse ela. - Eu ficaria mais feliz se pudesse dizer que essas áreas lembram um parque nacional.
Especialistas observam que é possível equiparar a magnitude do problema na terra e no mar, já que as frotas mundiais de jatos comerciais e navios chegam a dezenas de milhares. Mas a construção de navios que provoquem menos poluição sonora no mar vai demorar mais tempo, disse Bahtiarian.
- A vida útil de um navio é de 30 ou mesmo 50 anos, de modo que pode demorar bastante até que as frotas se tornem mais silenciosas - observou ele .
Ainda assim, acrescentou Bahtiarian, a tendência a combater os ruídos parece inevitável, dados os novos relatórios sobre poluição sonora e a crescente sensibilização quanto aos perigos enfrentados pelas baleias, golfinhos e outros mamíferos marinhos.
- Nós já dispomos da tecnologia necessária - disse ele. - Tudo indica que agora é só uma questão de tempo.
The New York Times
Projeto procura mapear e reduzir poluição sonora no oceano
Iniciativa também busca entender melhor qual o impacto dos ruídos produzidos por humanos sobre os mamíferos marinhos
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