Rafah, Faixa de Gaza - Quando os familiares de Fadel Shalouf foi buscar seu corpo no necrotério, um dia após sua execução numa esquina movimentada de Gaza, eles encontraram suas mãos ainda algemadas nas costas. O Hamas, facção militante que governa Gaza, não ofereceu uma perua para levar o corpo ao funeral, então eles o colocaram no colo de dois homens no banco traseiro de um sedã.
Foi um fim indigno para uma vida curta e encoberta. Shalouf, segundo sua família, era um pescador analfabeto com talento para projetar pipas quando foi preso pelo serviço de segurança interna de Gaza. Em janeiro de 2011, porém, ele foi condenado num tribunal do Hamas por fornecer informações a Israel - informações que teriam levado ao assassinato, em 2006, de Abu Attaya, comandante dos Comitês de Resistência Popular.
Em novembro, durante a intensa batalha de oito dias com Israel, o braço militar do Hamas colocou um fim brutal e público a Shalouf, de 24 anos, e seis outros suspeitos de colaboração. As mortes por homens encapuzados - com um corpo arrastado por uma motocicleta num bairro de Gaza e outro deixado para as multidões verem numa rotatória de veículos - destacaram o sofrimento dos colaboradores, peões caçados pelos dois lados no persistente conflito israelense-palestino.
- Fadel viveu e morreu na pobreza - declarou seu primo, Ahmed Shalouf, de 28 anos. - Eles deixaram os corpos por algumas horas nas ruas, com pessoas cuspindo neles, jogando pedras. Eles não executaram apenas Fadel, eles executaram todos nós.
Para Israel, apesar de sua avançada tecnologia para rastrear terroristas, a parte de recursos humanos continua sendo uma ferramenta essencial de inteligência - que permite ataques precisos como o que abateu Ahmed al-Jabari, comandante de operações das Brigadas Al Qassam do Hamas, no início da recente escalada. Para o Hamas, eles são os inimigos internos, e uma vigorosa repressão, aliada aos ocasionais linchamentos, são poderosas ferramentas psicológicas para garantir a lealdade e silenciar a dissidência.
Segundo ex-funcionários de inteligência e especialistas no fenômeno, muitos colaboradores são almas sofredoras que são chantageadas para entrar no serviço por um governo israelense com grande influência sobre suas vidas. Alguns são convocados quando solicitam autorização para realizar tratamentos médicos em Israel, por exemplo, ou em troca de melhores condições nas cadeias israelenses. Outros são ameaçados pela exposição de comportamentos condenados por suas comunidades religiosas islâmicas - consumo de álcool ou adultério, por exemplo.
- Não existe substituto para uma fonte humana, pois essa fonte entra nas casas deles, às vezes até mesmo na mente deles - afirmou Yaakov Peri, antigo chefe da Shin Bet, agência de inteligência doméstica de Israel. - Com toda a tecnologia (veículos não tripulados, qualquer coisa), você precisa de um segundo plano, e precisa da ajuda de uma fonte humana.
Peri disse que os colaboradores palestinos podem receber dinheiro para despesas ou um pequeno salário, mas "você nunca será um homem rico".
Hillel Cohen, pesquisador do Instituto Truman para o Progresso da Paz, da Universidade Hebraica de Jerusalém, que escreveu dois livros sobre o assunto, explicou que alguns colaboradores em Gaza "fazem isso apenas pelo dinheiro", e outros "para fazer parte de uma história maior"; poucos são realmente apoiadores de Israel, completou ele, mas muitos têm problemas com o Hamas.
- Eu entrevistei muitos colaboradores, e eles têm um tipo de complexo de inferioridade - continuou Cohen. - Eles veem o Ocidente, Israel, como muito melhor do que o mundo árabe. Ouço expressões como: 'Nós não valemos nada'. Às vezes vem daí, e às vezes é parte do que as autoridades israelenses colocam na mente deles.
A colaboração está no alicerce das relações entre Israel e Palestina desde antes de existir um estado moderno de Israel, datando desde pelo menos o movimento judaico clandestino que operou durante a era do Mandato Britânico, na década de 1930. Os Acordos de Oslo, assinados por negociadores israelenses e palestinos em 1994, transformaram duas aldeias - uma em Gaza, outra na Cisjordânia - em refúgios seguros para cerca de 1.500 beduínos suspeitos de espionagem.
A própria definição de colaboração foi ampliada nos últimos anos. Membros do Hamas e outros grupos militantes consideram que a Autoridade Palestina está ajudando o inimigo quando coordena serviços de segurança na Cisjordânia com Israel. Como o Hamas assumiu controle de Gaza em 2007, após vencer as eleições, membros da facção rival Fatah que vivem ali vivem quase sempre sob suspeita. Vender terras a judeus é crime punível com a morte.
Mas embora especialistas dos dois lados estimem que mil suspeitos de colaboração tenham sido mortos - principalmente em justiça sumária - entre 1987, o início da primeira intifada palestina, e 1994, grupos de direitos humanos documentaram uma boa quantidade de casos desde então. Das 106 sentenças de morte impostas pela Autoridade Palestina e pelos tribunais administrados pelo Hamas desde 1995, segundo a B'tselem, importante organização israelense de direitos humanos, 40 foram por colaboração; em setembro, seis dessas pessoas haviam sido executadas.
Os homicídios extrajudiciais de novembro - os sete homens haviam sido julgados e condenados, mas vários deles, incluindo Shalouf, possuíam apelações pendentes - foram um eco à execução pública de pelo menos doze colaboradores que escaparam de prisões do Hamas bombardeadas na última ofensiva de Israel sobre Gaza, a Operação Chumbo Fundido, em 2008-2009. Mas as mortes foram um gritante desvio dos esforços do Hamas desde então, de perseguir colaboradores nos tribunais e não nas ruas - destacando seu dilema como um movimento enraizado na resistência militante que hoje tenta administrar um governo.
As Brigadas Qassam, o braço armado do Hamas, reivindicaram o crédito pelos assassinatos, mas alguns líderes do partido condenaram a ação. Issam Younis, diretor do Centro Al Mezan de Direitos Humanos em Gaza, disse ter se encontrado com o ministro da justiça do Hamas e ficado convencido de que as execuções estavam sendo investigadas - e que seus autores seriam punidos.
- Esse é o desafio para o Hamas: até que ponto o Hamas está mais próximo da mentalidade de um estado em vez da mentalidade do movimento - afirmou Younis. - Estamos falando sobre a lei da selva. Ninguém tem o direito de cometer tais assassinatos. O governo possui todos os poderes e instituições legais; eles podem fazer isso adequadamente, de acordo com a lei.
Numa entrevista quatro dias após sua morte, parentes de Shalouf contaram que ele havia sido sequestrado em 10 de janeiro de 2008, a caminho do mar para pescar sardinhas, robalo e caranguejos. Seu pai, Mussalam Shalouf, disse ter sido convocado pelo serviço de segurança interna nove dias depois, e encontrou Fadel, um de seus 10 filhos, com os dedos quebrados e queimaduras na pele, reclamando que havia sido pendurado no teto, pelos tornozelos, durante os interrogatórios.
Ahmed Shalouf, o primo, disse que em vez de apoiar o inimigo, Fadel havia ajudado a resistência - transportando quatro combatentes até águas egípcias, violando o bloqueio naval de Israel na costa de Gaza. Ele ofereceu uma foto de Fadel usando muletas, na época do assassinato de Abu Attaya, como prova de que ele não estava envolvido.
- Como pode haver um colaborador que não possui mais do que um chip de celular? Ele não consegue nem mesmo escrever seu nome no celular - declarou Ahmed Shalouf.
- Se fosse um colaborador, ele teria ao menos construído um quarto - acrescentou o primo, mostrando a antiga estufa cheia de destroços onde, segundo ele, Fadel dormia sobre uma plataforma. - Ele teria comprado um carro. Ele teria comprado roupas.
Desde a prisão de Fadel, os vizinhos nem olham nos olhos de seus familiares. Seu irmão mais novo, Bader, foi preso um ano mais tarde por acusações similares, mas ainda não foi julgado. Mussalam Shalouf, de 57 anos, afirmou que após Bader ser solto ou executado, a família deixará Gaza, talvez buscando asilo na Suécia.
- É como se estivéssemos num galpão de vacas, esperando por nossa vez no abate - comparou Mussalam. - Depois do que aconteceu com meus filhos, eu odeio todas as pessoas; odeio até a mim mesmo.
The New York Times
Em Gaza, colaboradores enfrentam futuro sombrio
Civis suspeitos de ajudar Palestina ou Israel acabam sendo caçados por homens dos dois lados
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