Romper a barreira de admissibilidade é a tarefa mais difícil que o Ministério Público (MP) irá enfrentar para levar ao Tribunal do Júri os quatro réus do processo principal da tragédia na boate Kiss. Assim entende o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp ao citar a súmula 7 da corte, que impede o reexame de provas. Com isso, é possível que o presidente do Tribunal de Justiça nem remeta ao STJ o recurso se entender que não há questões processuais a serem revistas.
— O recurso especial junto ao STJ é para verificar, por exemplo, se houve má interpretação da Lei Federal ou mau uso do dispositivo legal. Não cabe aos ministros reanalisar os fatos, se os réus sabiam do risco, se houve negligência, imprudência ou irresponsabilidade. E me parece que, ao revisitar a questão da culpa ou do dolo eventual, isso vai entrar em questão.
O recurso especial aos ministros do STJ entrou em discussão na sexta-feira (1º), quando o MP adiantou que irá recorrer da decisão que tirou do Tribunal do Júri o julgamento dos ex-sócios da casa e dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira. O 1º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça entendeu que Elissandro Spohr, Mauro Hoffmann, Luciano Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos não assumiram o risco de matar as 242 pessoas que morreram após incêndio na boate em 27 de janeiro de 2013. O placar terminou empatado, 4 a 4, o que beneficiou os réus. Com a decisão, o dolo eventual (quando se assume o risco) foi afastado e o processo voltará para ser julgado por outro crime, que não seja com dolo, podendo ser homicídio culposo e incêndio.
Considerando que o STJ dê provimento ao recurso da acusação, a repercussão nacional do caso pode influenciar na decisão dos ministros, cogita o desembargador aposentado Aramis Nassif. Ainda assim, considera improvável julgamento popular.
— Chance de reversão sempre há. Por isso existem os recursos. Mas, neste caso específico, eu não acredito. O argumento acolhido pelo 1º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça é tecnicamente mais correto. O que precisa ficar claro é que o dolo eventual é quando se assume o risco e não se importa com o resultado. Ou se aceita o resultado como efeito natural. Se morrer, morreu. Não me parece que tenha acontecido isso. Mas, claro, os ministros podem pensar diferente. Há uma margem muito estreita entre culpa e dolo eventual.
Já o doutor em Direito Lúcio de Constantino comenta que se o STJ admitir o recurso e manter seu atual entendimento sobre a distinção entre homicídio doloso na forma eventual e culposo é provável que não seja revertida a decisão.
— Quando você compra um estabelecimento e abre para o público, você não imagina que irá pegar fogo no palco e que as pessoas que estão dentro irão morrer, inclusive você. E é isso que diz o dolo eventual.
O advogado criminalista utilizou o caso de um motorista embriagado para exemplificar a diferença para homicídio culposo:
— Nos dois casos você prevê a possibilidade de matar, porém, no homicídio culposo, o motorista não quer o resultado morte, enquanto que no homicídio doloso, forma eventual, se a morte ocorrer, tanto faz. Algo como se um motorista entrasse no carro e pensasse: se eu matar alguém, azar.
Por estas questões, Constantino diz que sempre teve receio da acusação por dolo eventual. Além de considerar discutível (a denúncia), ainda tem a demora na tramitação.
— Se fosse por homicídio culposo todos já estariam condenados ou absolvidos. Agora, vai levar meses para o Tribunal de Justiça julgar a admissibilidade do recurso. E, se negar, a acusação terá de entrar com outro recurso ao STJ e esperar anos para ser julgado.
O advogado André Luís Callegari, doutor em Direito Penal pela Universidade Autônoma de Madri, segue o entendimento de Constantino, de Nassif e da defesa dos réus. Para ele, o STJ irá manter a decisão do Tribunal do Júri.
— Os cinco ministros irão analisar o fator técnico, que, na minha opinião, está correto. Eu me solidarizo com as famílias das vítimas, mas quem acendeu o fogo lá dentro não aceitou o risco de morrer junto. Eles foram irresponsáveis. Por isso, tecnicamente, é provável que ocorra a manutenção da decisão.
Callegari descarta, ainda, a influência de fatores emocionais.
— A pressão popular que acontece em Santa Maria está distante do STJ e não deve impactar na decisão dos ministros — finaliza.
O que diz o MP
O coordenador do Centro de Apoio Criminal, Luciano Vaccaro, acompanhou a votação no TJ e lembrou que desde início o Ministério Público defendeu que houve dolo.
— A condenação deve ser por homicídio doloso, temos a convicção disso.
De acordo com o procurador de Justiça Silvio Munhoz, que assinou o parecer do MP e atuou na sessão, o empate escancarou a divergência entre os desembargadores e a própria controvérsia do caso. Por isso, na avaliação de Munhoz, os réus deveriam ser julgados pelo tribunal popular, sob pena de violação do princípio da soberania do Júri.
— Nós não nos conformamos com esta decisão do Tribunal de Justiça. Por isso, vamos percorrer todas as instâncias judiciais necessárias para revertê-la e levar os acusados a julgamento pelo tribunal popular — afirmou o procurador-geral de Justiça, Fabiano Dallazen, logo após ser informado da decisão.
Próximos passos
- O Ministério Público entra com recurso especial pedindo revisão da decisão pelo Superior Tribunal de Justiça.
- O Presidente do Tribunal de Justiça é quem analisa se estão presentes os requisitos e admite ou não o recurso.
- Se a admissibilidade for negada, a acusação pode entrar com um agravo regimental diretamente no Superior Tribunal de Justiça pedindo a apreciação da matéria pelos ministros.
- Negada novamente, cabe ao juiz de primeira instância julgar o caso em gabinete por outros crimes, como homicídios culposos ou incêndio.
Nos Estados Unidos, condenações foram por homicídio culposo
O advogado Lúcio de Constantino lembrou do incêndio na casa noturna The Station, em West Warwick, no Estado americano de Rhode Island, que deixou cem mortos e um país inteiro estarrecido. O caso é muito semelhante ao da boate Kiss, a não ser pela denúncia. Lá, os donos da casa e integrantes da banda foram a julgamento e condenados por homicídio culposo.
No dia 20 de fevereiro de 2003, um integrante da banda The Great White acendeu fogos de artifício que faziam parte do espetáculo, dando início ao incêndio na boate. As chamas se espalharam pelo revestimento acústico da casa — uma espuma de material químico altamente inflamável, que não apenas gerava fumaça tóxica ao queimar, como pingava do teto, queimando a pele do público.
As investigações mostraram que a casa estava superlotada e que não possuía saídas de emergência adequadas. Várias pessoas foram pisoteadas ao tentar deixar o local, o que apenas piorou a obstrução das portas. Em número de mortes, o incidente foi o quarto incêndio em uma casa noturna mais destruidor da história americana, de acordo com a Associação Nacional de Proteção contra Incêndios dos Estados Unidos.