Era uma manhã de janeiro de 2006 quando Laura Pires acordou com a sensação de um cisco no olho. Tinha 25 anos, era uma arquiteta em início de carreira e trabalhava feito condenada de manhã até a noite. Natural de Pelotas, havia se mudado para o Rio de Janeiro com o namorado, o rio-grandino Marcus Fahr Pessoa, e vivia uma vida ligada na tomada de 220 volts. A rotina impedia dar muita atenção ao que parecia apenas isso, um cisco no olho. Só que os dias foram passando; o incômodo, não. Ela resolveu consultar um oftalmologista.
A primeira suspeita recaiu sobre glaucoma e descolamento de retina. Um segundo especialista diagnosticou inflamação do nervo óptico. Laura ainda recorreu a outros médicos, mas cada um dizia uma coisa. Um mês se passou, e o sintoma do cisco no olho ganhou a companhia de formigamento nos braços. Em poucos dias, Laura viu um lado inteiro do corpo paralisar. Submeteu-se a uma série de ressonâncias no cérebro até receber o diagnóstico correto e aterrorizante: esclerose múltipla, doença degenerativa, debilitante e incurável, que compromete o sistema nervoso central.
A saúde degringolou. Daquele cisco no olho em janeiro, Laura chegou ao mês de maio muito doente. Perdeu completamente a visão periférica. Não andava mais, sentia cãimbras e tremores horríveis. Perdeu oito dos 45 quilos. Chegou a pesar 37. Era alimentada na boca pelo namorado e negou-se a realizar os tratamentos convencionais com corticosteroides.
? Minha decisão sempre foi de não tomar remédios ? afirma Laura.
Foi então que Marcus lembrou de um médico que havia conhecido durante uma viagem à Índia, quando ele sofreu com uma inflamação nos olhos.
? Pedi ao Marcus que enviasse um e-mail para esse médico, e ele respondeu disposto a me atender, mas tínhamos que partir o quanto antes ? lembra Laura.
Estamos sentadas no café da Livraria Argumento, no Rio de Janeiro, local escolhido por ela para esta entrevista. Estava particularmente curiosa para conhecer a protagonista do livro Em Busca da Cura, de autoria de Marcus e publicado este ano pela Casa da Palavra. A obra relata em detalhes a jornada do ex-casal em uma viagem transformadora à Índia para tentar a recuperação de Laura com ayurveda, a milenar medicina indiana, que utiliza óleos, massagens, ervas e uma rígida dieta alimentar.
A característica mais importante da esclerose múltipla é a imprevisibilidade dos surtos. A Laura sentada à minha frente neste 2013 é uma mulher sem surtos desde 2008. Viaja todos os anos para a Índia para submeter-se a tratamentos de manutenção e obedece a uma rotina espartana de cuidados com corpo e mente.
Transformou a ayurveda em seu ganha-pão. Tornou-se terapeuta ayurvédica formada pelo Ganga Spa e com especialização em Herbologia, Saúde da Mulher, Nutrição e Culinária pela International Academy of Ayurveda em Pune, na Índia. Ministra cursos de culinária, palestras e orientações personalizadas por todo o país. Acaba de lançar O Sabor da Harmonia - Receitas Ayurvédicas para o Bem-Estar.
? Mudei e ganhei minha vida de volta ? sorri.
Foi uma transformação radical que iniciou com um tratamento ainda mais radical em uma clínica cercada pela natureza. Laura passou por tratamentos nada convencionais, como mergulhar os olhos em manteiga clarificada, conhecida como ghee, ou colocar capacete feito de pão e folha de bananeira dentro do qual eram despejados três litros de óleo medicinal aquecido.
Enquanto esteve internada, o estado piorou bastante, uma vez que a ayurveda não combate os sintomas e sim busca tratar a causa da doença. Tinha cãimbras horríveis que duravam a madrugada inteira.
? Mas enfiei na cabeça que aquilo ia me curar ?lembra. ?Logo que voltamos ao Brasil, reparei que estava enxergando novamente durante a noite. Antes, via apenas uns borrões. Já era um sinal visível de melhora.
Laura vive e convive com o prognóstico de uma doença ainda sem cura. A diferença é a nova forma de encarar a vida.
?O que tem me curado é a mudança de comportamento, a minha maneira mais leve e tranquila de ser - ressalta, em uma entrevista cujas respostas reafirmam a nova crença como um dogma a ser seguido.
Laura fotografada em sua casa, na Barra da Tijuca, no Rio, após cinco anos sem desenvolver surtos da doença: "Mudei e ganhei minha vida de volta"
>> Conheça os sintomas da esclerose múltipla
- Perda súbita da visão,
- visão dupla ou turva
- Dormência ou falta de força em um lado do corpo
- Desequilíbrio ao caminhar
- Formigamento do peito para baixo
- Fadiga intensa
- Fala enrolada
:: Em matéria publicada por ZH, veja dicas sobre como lidar com doenças neurodegenerativas
>> Tratamento
- Medicamentos injetáveis capazes de diminuir os surtos são administrados com sucesso em boa parte dos casos. Os quatro mais antigos são os imunomoduladores (aumentam a resposta orgânica contra alguns microorganismos), que reduzem em 35% o risco de novos surtos e são fornecidos gratuitamente pelo governo.
- Está para ser lançado um novo tipo de injeção que pode diminuir esse risco em 65%. Há ainda pacientes sendo testados no mundo inteiro, inclusive na Capital, com um remédio que pode reduzir em 85% a chance de crises
Confira a entrevista com Laura Pires:
Donna - Essa viagem em busca da cura aconteceu em 2006, ou seja, há sete anos. Você diz que ainda é difícil ler o livro e recordar? Por quê?
Laura Pires - Ainda não me acostumei, por incrível que pareça. Reviver cada detalhe daquela fase não é nada bom. Toda vez que encontro alguém que tem esclerose múltipla, volta tudo na minha cabeça, começo a relembrar o que eu passei e isso não é nada fácil.
Donna - Marcus foi extremamente detalhista em seu relato no livro Em Busca da Cura, inclusive contando fatos que talvez você nem deva ter tomado conhecimento na época.
Laura - Ele foi muito verdadeiro em todos os fatos. Eu não consegui ler todo o livro. Pulei algumas partes. A memória volta a ficar muito viva e é muito duro lembrar. Sempre que li, chorei muito.
"Este procedimento chama-se Shirovasti. A médica e a enfermeira fazem a aplicação do óleo quente e medicado para tratar e ajudar a reconstituir e acalmar o sistema nervoso", explica Laura
Donna - Quem é portador de uma doença sofre, mas quem está ao lado, o cuidador, sofre muito também. De alguma forma, o livro revela o sofrimento e as angústias do Marcus. Isso também deve ser muito duro de ler, afinal a gente nunca deseja causar sofrimento a quem a gente ama.
Laura - Sem dúvida. Em Busca da Cura é um livro escrito pelo Marcus, então traz a visão dele da história. A maioria dos livros que tratam de doenças são escritos ou relatados por pacientes que contam sobre o que passaram, o que viveram, quais dores sentiram, como superaram. Este livro é bem diferente, ele traz a visão de quem cuidou de mim. Não estamos acostumados a ouvir relatos do cuidador, mas do paciente. As pessoas que cuidam também sofrem, e sofrem de uma outra maneira, porque estão ali ao lado, fazendo de tudo, tentando ajudar e, às vezes, por mais que façam, por mais que tentem e se doem por inteiro, se pegam impotentes diante da situação.
Donna - Marcus teve um papel fundamental nessa sua viagem para a Índia. Ele assumiu uma responsabilidade que quase beira o absurdo. Se tudo desse errado, imagino a culpa que não sentiria pelo resto da vida, uma vez que sua família não estava de acordo com a decisão de vocês. Queria saber como seus pais analisam hoje aquela viagem e se mudaram de opinião ao ver que você voltou de lá em melhores condições.
Laura - Minha mãe mudou a alimentação e a rotina de vida depois de tudo o que aconteceu comigo. Já meu pai . (Risos). Meu pai continua com os mesmos hábitos de um típico gaúcho que mora em Pelotas. Quando Marcus e eu tomamos a decisão de viajar, eu não quis ouvir muito o que eles tinham a dizer, pois sabia que não estariam de acordo. Tanto que eu só fui ligar para minha mãe quando já estava no aeroporto em São Paulo, quase entrando no avião. De outra forma, eles me impediriam.
Após receber diagnóstico de esclerose múltipla aos 25 anos, Laura Pires buscou a cura na Índia
Redação Donna
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