Ilze Scamparini nasceu em uma família de descendentes de italianos em Araras, interior de São Paulo. Cresceu ouvindo os avós falarem um dialeto e, com muita dificuldade, alguma coisa do português. À mesa, comiam tortelli di zucca, como se refere ao famoso tortéi, um de seus pratos preferidos. Durante toda a infância e adolescência, estudou em escola administrada por freiras italianas.
Não à toa, a jornalista estabeleceu-se onde vivem os papas como uma das mais conhecidas correspondentes internacionais do Brasil. Faz 23 anos que as ruas de Roma, na Itália, tornaram-se cenário de seu trabalho e de sua vida. Foi lá que conheceu seu parceiro, o escritor e roteirista de filmes de comédia Domenico Saverni dei Mezzatesta, que a acompanha há 18 anos e com quem planeja se casar.
O casal mora perto da Praça Navona, um dos principais pontos turísticos do mundo. Basta subirem ao terraço de casa para uma vista privilegiada da cúpula da Igreja de Santa Inês, projetada pelo escultor barroco Francesco Borromini.
O lar foi escolhido a dedo para que suas entradas na TV Globo, às vezes feitas dali mesmo, dessem aos espectadores brasileiros uma amostra da arquitetura local.
— Quando você é correspondente internacional, precisa ter um bom cenário à mão para entrar ao vivo a qualquer momento. Nem sempre se consegue chegar a tempo ao Coliseu, à Casabranca ou ao Big Ben de Londres — diz ela, que já atuou também como correspondente em Los Angeles, nos Estados Unidos.
Dedicada ao jornalismo, dorme tarde e acorda cedo. Lê as notícias do dia e precisa esperar o Brasil despertar para decidir com os editores o assunto que deve cobrir. Arranja ainda algum tempo para caminhar e levar a cachorra para passear.
E não parece dar muita importância aos cuidados estéticos. Segundo comenta, “passa um creme no rosto, mas não sempre”, embora sua elegância diante das câmeras seja notória.
— A forma como você se veste, muitas vezes, mostra o respeito que você tem pelas pessoas, pelo lugar. A gente tem que se cobrar para estar vestida de forma adequada nos lugares —opina, ao contar sobre o episódio em que, para o Globo Repórter, trajou-se de smoking para entrevistar artistas que fizeram parte dos primórdios do cinema brasileiro.
Aos 64 anos, Ilze não se sente velha e nem pensa em parar. Pelo contrário, segue realizando sonhos. Recentemente, veio ao Rio Grande do Sul para lançar seu primeiro romance, Atirem Direto no Meu Coração (Harper Collins), em que conta a história de uma mulher que se voluntariou para lutar ao lado de milicianos na guerra do Kosovo, inspirada em uma pessoa real, que conheceu por acaso e cuja experiência a fascinou.
— Se anos atrás uma pessoa se sentiria velha, bom, eu não me sinto. O tempo passa e continuo me sentindo a mesma pessoa, a mesma jovem. O meu companheiro que fala: “Me sinto sempre o mesmo menino”. Ele tem a minha idade. A gente se vê internamente e pouco externamente — reflete.
Como foi sua infância no interior de São Paulo?
Os imigrantes do norte da Itália se instalaram no Rio Grande do Sul, mas também no interior de São Paulo. Três quartos da minha família são do Vêneto e uma parte da Lombardia. Cresci em uma comunidade de famílias que mantiveram suas tradições. Tanto que a comida preferida da minha até hoje é o tortelli di zucca.
Nós falávamos muito o dialeto, só fui aprender italiano mesmo na juventude. Estudei no Colégio Salesiano, uma escola de freiras com sede em Turim, na Itália. Entrei com quatro anos e saí com 18, direto para a faculdade. Quando as freiras de Turim visitavam nosso colégio em São Paulo, era sempre um frisson. E a minha cidade no interior paulista é de maioria italiana.
Na infância, minha relação com aquele país era de ódio e amor. Tinha afeto com a língua por causa da família, mas também tínhamos um pouco de vergonha, porque nossos avós não falavam português. Então, minha geração viveu esse conflito. Mas cresci e tive orgulho da minha origem.
Inclusive, cresci com o desejo de conhecer a terra da minha família. Não imaginava que viveria aqui por tanto tempo.
E a decisão de ser jornalista?
Eu tinha três inclinações fortes. Uma era ser repórter, para contar as coisas. Gostava de fazer jornais no colégio. Também gostava muito de artes plásticas. Pinto e desenho desde a infância, e gostava também de arqueologia. Então, essas três inclinações cresceram comigo.
Acabei optando pelo jornalismo, porque foi o que falou mais forte. Mas nunca abandonei as artes plásticas. E a arqueologia acabo exercendo por morar em Roma. Aqui, alimento esse fascínio.
Você expõe seus trabalhos?
Tem algumas coleções de fotos que gostaria de expor. Fiz uma viagem para o Fantástico pela costa da Líbia com um navio que recolhia imigrantes.
Foi uma viagem tensa, com o mar agitado. Fiz um trabalho fotográfico que considero bastante e gostaria de expor. Mas tenho prioridades. Primeiro, o trabalho de repórter. Segundo, o de escritora.
É difícil ficar longe da família?
Sempre foi, mas sempre viajei muito para o Brasil, e minha família também vem para cá. Mas não foi difícil fazer amigos aqui. Tenho um grupo há mais de 20 anos. É bem mais fácil fazer amigos aqui do que nos Estados Unidos.
Como é sua rotina?
Durmo tarde, acordo cedo e gostaria de dormir bem mais. Leio todos os jornais, pesquiso o que está acontecendo no mundo e tento prever meu dia. Às vezes, procuro passar um creme no rosto, fazer uma caminhada, levar a cachorrinha para passear.
Vou à feirinha, mas não sempre. Tudo com pressa. E espero o horário de as pessoas acordarem no Brasil para ver o que preciso fazer.
Não ter filhos sempre foi o plano?
Minha irmã teve duas filhas e ajudei a criá-las. Parte do instinto materno resolvi com minhas sobrinhas. Meu irmão mais velho também teve filhas. Meu contato com elas faz com que me sinta uma segunda mãe. E também porque não deu tempo. Sempre viajei muito, tive uma vida atribulada. Achava que não seria uma boa mãe.
Outra coisa: no Brasil, é difícil encontrar pessoas sem filhos, mas aqui a grande maioria dos meus amigos não tem filho. Antigamente, as famílias italianas eram enormes, a avó do meu marido teve 20 filhos, mas hoje a Itália é um dos países onde menos nascem crianças, uma das mais baixas natalidades do mundo.
Como você conheceu seu marido?
Sabe como se conhece as pessoas aqui? Em jantar. No Brasil, as pessoas se conhecem na praia; em São Paulo, talvez, na casa dos amigos. Fui jantar na casa de uma amiga e encontrei ele. Estamos juntos há 18 anos e não somos casados, mas pensamos em nos casar. O casamento se torna mais interessante depois que você passa bastante tempo com uma pessoa.
Foi ele que te instigou a escrever seu primeiro romance?
Não. Escrever sempre fez parte da minha vida. Estava procurando uma história que me convencesse, que fizesse me apaixonar. E aconteceu de conhecer uma mulher, por acaso, que tinha lutado na guerra do Kosovo como soldada de milícia.
Achei interessante e perguntei se poderia escrever sobre essa experiência. Era uma vida cheia de coisas, digna de ser contada. Um romance livremente inspirado em fatos reais.
Como você fez para conciliar os trabalhos como escritora e repórter?
Por isso demorou tanto tempo, porque é difícil se organizar. Todo o processo durou 10 anos. Fico o tempo todo disponível para o meu trabalho de correspondente.
Fui escrevendo o livro de madrugada e pela manhã, ao nascer do sol. E teve a fase de pesquisa, que durou anos.
A aparência é uma questão para uma correspondente internacional?
Fiz um especial para o Globo Repórter entrevistando artistas que fizeram parte da companhia Atlântida Cinematográfica, entre eles Grande Otelo, e botei smoking preto e um sapato alto preto. Estava super legal a minha roupa. Quando cheguei, o Carlos Manga (diretor de cinema) me falou: “Muito obrigado pela forma como você se vestiu para nos entrevistar, porque mostra o respeito que você tem por nós, os velhinhos do cinema brasileiro”.
Aquilo me emocionou. Me vesti bem, porque dava importância para aquelas pessoas. Mas, às vezes, acontecem coisas que você não espera. Te conto uma história. Estava para entrar ao vivo com notícias do dia em um telejornal da Globo, mas veio a notícia de um ataque terrorista na Bélgica. Estava com óculos azuis, que poderiam ser interpretados como um look moderno, mais brincalhão. Fui criticada por estar usando eles falando de atentado terrorista. Só que a notícia chegou naquele segundo e tive que dar. Acontece.
Tem meme seu de óculos no Rock in Rio e da Ilze gótica no telhado. Como encara essas brincadeiras?
Me divirto, mas gostaria que as pessoas reconhecessem o valor do Borromini. O terraço acima da minha casa fica de frente para a cúpula, na Praça Navona, e é esse cenário que as pessoas enxergam. De lá também dá para ver a cúpula do Vaticano, que é do Michelangelo, mas daí preciso subir mais um andar.
É realmente um privilégio que divido com os brasileiros. Fiquei na fila, por anos, para conseguir um espaço que fosse significativo da arquitetura romana.
Como você se sente aos 64 anos? A vida é melhor hoje?
Aqui na Europa está mudando o conceito de envelhecimento, porque são países com uma população muito envelhecida. Uma pessoa com 60 anos hoje é como uma pessoa de 40. O envelhecimento foi jogado lá para frente. Se anos atrás uma pessoa se sentiria velha, bom, eu não me sinto. O tempo passa e continuo me sentindo a mesma pessoa, a mesma jovem.
Meu companheiro que fala: “Me sinto sempre o mesmo menino”. Ele tem a minha idade. A gente se vê internamente e pouco externamente. São os outros que percebem que o tempo passou.
Qual a diferença na forma como as italianas lidam com a aparência física e a passagem do tempo em relação às brasileiras?
No Brasil, pessoas comuns, que não são artistas, fazem muito mais intervenções estéticas do que aqui. Eu diria que a mulher italiana faz menos e, aparentemente, há menos homens trocando a mulher por uma mais jovem.
Tenho visto, inclusive, trocando por mulheres mais velhas. A impressão que tenho é de que a mulher madura, aqui, tem mais valor. Talvez porque a população seja mais velha.
Você e seu parceiro pretendem voltar a morar no Brasil ou devem seguir vivendo na Itália?
A gente pretende ficar nos dois lugares. Gostamos muito do Brasil e daqui. Se pudéssemos, gostaríamos de ficar seis meses aí e seis meses aqui. Depende dos projetos, dos livros que eu estiver escrevendo.
Gostaria de viajar contando histórias, é um sonho, a gente nunca sabe o que a vida nos reserva. E o Domenico também, porque ele pode exercer o trabalho dele de longe.