Em 24 de junho de 1912, o político Joaquim Francisco de Assis Brasil inaugurou o castelo de Pedras Altas, nas planícies desoladas da zona sul do Estado. Erguida com pedras de granito rosado gaúchas talhadas por canteiros espanhóis, a fortaleza de linhas medievais esculpiu a filosofia de seu dono. O diplomata de São Gabriel pretendia demonstrar ser possível viver no campo sem embrutecer.
Na vereda que leva ao imóvel, mandou esculpir os versos “Bem-vindo à mansão que encerra / a dura lida e doce calma / o arado que educa a terra / o livro que amanha a alma”, de sua autoria. Dentro das torres e ameias, reuniu o maior acervo cultural-familiar do Rio Grande do Sul. Assis Brasil montou uma biblioteca de 15 mil volumes, entre clássicos em inglês, francês e latim. Pretendia transformá-la em museu público, onde os moradores da região teriam acesso a conhecimento e cultura.
Mais de um século depois, o sonho caiu no abandono. Tombado pelo patrimônio histórico, o castelo de 44 cômodos está fechado desde 2017, quando uma das bisnetas, Lydia de Assis Brasil, 65 anos, mudou-se da propriedade por ser impossível mantê-la sozinha. Hoje, vazamentos comprometem a mobília importada de Nova York e Paris, a umidade deteriora obras como os 22 volumes da enciclopédia de Diderot e D’Alambert, de 1751, e criminosos dizimam o valioso acervo, considerado uma fragmento da história gaúcha.
O imóvel resistiu à Revolução de 1923, quando chimangos invadiram a fortaleza de Assis Brasil, líder dos maragatos. Enquanto as grades oxidam e a tinta das portas descascam, a estrutura corre o risco de ceder ao desamparo. Três arrombamentos foram registrados na polícia de Pedras Altas, município de 2 mil habitantes à sombra do castelo, nos últimos dois anos. No primeiro, em julho de 2017, invasores violaram a capela e as lápides do cemitério de Boa Viagem, onde repousam Assis Brasil e a segunda esposa, Lydia. Levaram dois vasos de terracota e um canhão de ferro.
Em fevereiro deste ano, bandoleiros entraram por uma das janelas do segundo piso e reviraram o mobiliário, danificando uma espada de marfim, presente de um imperador chinês ao diplomata. Saíram pela porta da frente levando um conjunto de medalhas, um relógio de cabeceira, uma caixa de madeira com tampa de cristal, um porta-garrafa de prata e uma champanhe de 1884 com as iniciais de Assis Brasil.
Quatro meses depois, arrombaram três janelas, mas nada furtaram.
Inventário
Os familiares discutem uma maneira de preservar a herança há duas décadas, mas sem consenso. Depois da morte de Assis Brasil, em 1938, e de sua esposa, em 1973, o castelo e o seu entorno, uma fazenda de 300 hectares, foram partilhados entre os 12 filhos. Hoje, nenhum está vivo. O mais recente inventário tem 14 herdeiros, entre oito netos e seis bisnetos.
– A família está unida, interessada em tomar uma atitude positiva pela restauração de Pedras Altas, que está em um estado muito grave. O maior problema é financeiro, por ser muito difícil todos contribuírem – diz uma das netas, Maria Cecília de Assis Brasil Mendes, 78 anos.
A família está unida, interessada em tomar uma atitude positiva pela restauração de Pedras Altas, que está em um estado muito grave. O maior problema é financeiro, por ser muito difícil todos contribuírem. Isso tem nos preocupado.
MARIA CECÍLIA DE ASSIS BRASIL MENDES
78 anos, neta de Assis Brasil
Preocupados com um inquérito instaurado pelo Ministério Público do Estado por conta do comprometimento da estrutura, herdeiros se reuniram na última terça-feira na sede da Secretaria da Cultura do Estado, na Capital. O encontro foi convocado em um grupo de WhatsApp criado pela advogada Suzana de Assis Brasil Mendes, 51 anos, filha de Maria Cecília. Ela quer ressuscitar os planos do bisavô de constituir um museu:
– A ideia veio para prestigiá-lo, porque ele fez parte da história do Rio Grande do Sul. Osvaldo Aranha, Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros… Todos têm museus. Por que Assis Brasil não pode ter um também?
Propriedade privada apesar do interesse público, o castelo precisa ser recuperado e mantido pelos herdeiros. O plano de criar um museu popular esbarra na crise financeira. Falido, o Estado mal consegue dar conta dos seus nove museus, alerta o diretor de Memória e Patrimônio da secretaria, Eduardo Hahn:
– Como a família não entrou em consenso sobre o que fazer com a propriedade, sempre se encontra bloqueio nos processos de recuperação do acervo. O Estado tem responsabilidade, pelo tombamento, mas existe uma limite por ele ser privado e ter tantos herdeiros.
Ao fim do encontro, os descendentes decidiram pela assinatura de um documento único para dar um destino ao castelo, uma vez que a “diversidade” de opiniões sempre foi um entrave no deslanche do processo. Os Assis Brasil querem procurar um corretor especializado em bens históricos em uma nova tentativa de alienação do imóvel, frustrada há quatro anos.
– Hoje, toda a família concorda com a venda, mas entregar para qualquer pessoa é um risco.
Há uma fortuna em patrimônio mobiliário ali dentro – adverte o advogado Rafael das Neves Medeiros, representante de uma parte dos herdeiros.
Fortaleza inabitável e difícil de vender
Tida como guardiã do legado do avô, Lydia de Assis Brasil tomou conta do castelo durante 15 anos. Para cuidar do acervo histórico, morou sozinha no imóvel, na singular companhia de itens como um relógio que pertenceu a Bento Gonçalves, um biombo de couro assinado por Osvaldo Aranha e Luiz Carlos Prestes e uma fotografia em que Assis Brasil, exímio atirador, aparece mirando uma maçã na cabeça de Santos Dumont.
A pecuarista também recepcionou turistas, entre gaúchos, norte-americanos e europeus. Promovia visitas que tinham início no hall, passando pelas salas de piano e jantar, pela biblioteca e pelo depósito, onde ainda está um Ford 29 modelo A. Por R$ 18, o passeio incluía chá no jardim cercado de ciprestes e eucaliptos plantados pelo avô.
As intempéries, contudo, passaram a tornar o prédio inabitável. Em 2016, um projeto de cobertura provisória para afastar a umidade foi orçado em R$ 300 mil. Meses depois, um temporal derrubou duas árvores, bloqueando as estradas de acesso ao imóvel. Há dois anos, ela decidiu se mudar.
Atualmente, Lydia mora com uma das duas filhas na Estância do Cerro, fazenda a seis quilômetros do castelo, também em Pedras Altas. Ocupa-se da ordenha de leite das vacas criadas na solidão dos campos. Moradores a descrevem como uma senhora educada que invariavelmente usa botas de goma. Procurada em sua casa, não quis dar entrevistas.
Segundo o reduzido círculo de amigos e parentes com quem mantém contato, está ressentida pelo abandono da herança de Assis Brasil e pelo desentendimento da família. Lydia empenhou-se em elaborar um projeto cultural na área, mas nunca obteve o consentimento dos parentes. Em uma das tentativas, trabalhou com Beatriz Araujo, hoje secretária estadual da Cultura, e Cândida Morales, produtora paulista.
– Estabeleci uma ligação afetiva por ver uma mulher praticamente sozinha naquela batalha pela preservação da memória – conta Beatriz.
O castelo foi anunciado no mercado imobiliário em 2014, ao custo de R$ 15 milhões. A oferta incluía a fazenda e sua estrutura para pecuária e agricultura, um chalé, o castelo e os milhares de itens alocados dentro dele.
O imóvel foi oferecido a um público selecionado. Entre eles, o apresentador Galvão Bueno, proprietário de uma fazenda em Candiota, e Zuleika Torrealba, controladora do Grupo Libra, que ergueu um império em Bagé, à vinícola Casa Vadulga e ao diretor de TV Jayme Monjardim. Boatos à época, o interesse dos jogadores Ronaldo Nazário e Ronaldinho Gaúcho são negados por uma das corretoras, Vera Barbosa.
– O valor e o custo da reforma, que eram altos, trancaram as vendas – recorda.
A alienação mais próxima de se concretizar foi em 2015, quando os herdeiros aceitaram reduzir o valor para R$ 8,5 milhões para vendê-lo a uma ONG chamada Associação Missão África, de Moçambique.
Os contatos se deram unicamente por telefone com a suposta presidente da entidade. Uma minuta de contrato chegou a ser assinada, mas foi cancelada depois que uma pesquisa pelo endereço da organização resultou em um casebre em uma vila. Lydia liderou a resistência e conseguiu arrefecer o negócio.
Exigências
Pelo fato do castelo e de seu mobiliário serem tombados a nível estadual e federal, o comprador tem de estar comprometido em recuperar e conservar todo o acervo histórico. Além disso, a carência de infraestrutura na cidade se tornou um obstáculo, segundo o advogado Rafael das Neves Medeiros, que atende parte da família.
– Representantes de uma vinícola da Serra me falaram: “Doutor, queremos comprar a granja, mas precisamos de acesso asfáltico e aeroporto”. Bom, isso a família não pode oferecer – observa.
O castelo é a razão de Pedras Altas existir. Mas se tornou a cidade do castelo que nunca pode ser visitado.
AMARILDO BORGES
Secretário de Planejamento do município
A imponente fortaleza parece deslocada do município com ares de vila onde está instalada. Pedras Altas emancipou-se de Pinheiro Machado e Herval em 1999, mas permaneceu isolado do mapa gaúcho. Para acessá-lo, é preciso percorrer 32 quilômetros da RS-608, estrada de chão batido que nunca teve a promessa de asfalto cumprida. Motoristas têm optado pelo caminho mais longo, passando pela pavimentada BR-293.
Assim, os moradores do município rural nunca viram chegar o progresso anunciado pelo visionário Assis Brasil ou pelo potencial de negócios representado pela abertura de um empreendimento turístico. Seguem à espera do desenvolvimento, ressente-se o secretário de Planejamento do município, Amarildo Borges:
– O castelo é a razão de Pedras Altas existir. Mas se tornou a cidade do castelo que nunca pode ser visitado.
Ministério Público preserva documentos
Às vésperas da aposentadoria, o promotor de Bagé Everton Luís Resmini Meneses acelerou um inquérito estacionado na comarca de Pinheiro Machado para salvar os documentos guardados em Pedras Altas. Em uma ação civil pública de 28 páginas, escreveu que “as precárias condições estruturais do castelo” tornaram urgente a retirada do acervo, antes que se perdesse e “maculasse parte da história gaúcha e brasileira ainda desconhecida”.
A Justiça concedeu uma liminar em junho de 2018, quando se iniciou um acordo entre seis órgãos para recuperar os itens. O processo colocou na mesma mesa representantes do Ministério Público do Estado e Federal, além dos Institutos do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Estadual, da Secretaria da Cultura e da UFGRS.
Tem toda a atuação de Assis Brasil como político, desde o alvorecer da República até a sua morte, passando por momentos fundamentais da história do Rio Grande do Sul e do Brasil.
EVELISE ZIMMES NEVES
Historiadora do Ministério Público
Munida de máscaras e luvas cirúrgicas, uma equipe de pesquisadores foi a Pedras Altas, em janeiro, para reunir um número ainda incerto de documentos – estima-se que chegue a 12 mil. Sessenta caixas foram acomodadas em caminhão-baú para que se mexessem o mínimo possível. Pelas mãos de quem passou, o conteúdo até então desconhecido impressionou.
– Tem toda a atuação de Assis Brasil como político, desde o alvorecer da República até a sua morte, passando por momentos fundamentais da história do Rio Grande do Sul e do Brasil –conta a historiadora do Ministério Público, Evelise Zimmes Neves, aposentada desde abril.
Entre eles, rascunhos do Pacto de Pedras Altas (tratado de paz que pôs fim à Revolução de 1923, assinado entre os paredões do castelo), cartas do ex-presidente Getúlio Vargas (de quem Assis Brasil foi ministro da Agricultura) e fotos ao lado de Luiz Carlos Prestes, líder da Coluna Prestes. E há livros de registros do gado das raças devon e jersey, introduzidas por ele no Estado.
Tratamento
Os documentos estão arquivados no Memorial do Ministério Público, no Centro Histórico da Capital, aguardando tratamento. O acordo prevê a classificação do material e o tratamento técnico para que não se apague – a leitura de alguns está prejudicada por manchas e pelo esmaecimento da tinta. Um dia, quando o castelo for recuperado, serão devolvidos à granja.
À frente do processo, o coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente, Daniel Martini, tem buscado recursos de um fundo do órgão para a contratação de bibliotecários e historiadores. Somente uma primeira etapa foi orçada em R$ 400 mil.
– Temos de verificar qual parte da história está oculta nesses documentos, mas esbarramos na dificuldade de orçamento público. Num momento em que o Estado está parcelando salários, precisamos de cautela e responsabilidade para a busca de recursos – alerta Martini.
Também há processos sobre o restauro do imóvel no Ministério Público de Pinheiro Machado e no Ministério Público Federal. Já a Polícia Civil de Pinheiro Machado abriu um inquérito sobre os furtos à propriedade.
Os agentes cumpriram um mandado de busca na casa de um suspeito, mas não encontraram nenhum dos itens saqueados.
Quem foi Joaquim Francisco de Assis Brasil
- Parlamentar e diplomata, foi um dos principais personagens históricos do Rio Grande do Sul. Fundador do Partido Liberal e líder da Revolução de 1923, também é considerado o patrono da pecuária gaúcha.
- Nasceu em 29 de julho de 1857, na Estância de São Gonçalo, em São Gabriel, e morreu em 24 de dezembro de 1938, na Granja de Pedras Altas.
- O político criou o Partido Republicano no Rio Grande do Sul com seu cunhado, Júlio de Castilhos. Depois de fundada a República, partiu para a carreira diplomática, sendo embaixador em Buenos Aires, Portugal e Estados Unidos.
- Em 1922, foi candidato ao governo do Estado contra Borges de Medeiros. Diante da vitória do adversário, liderou o movimento armado de 1923 e também articulou o Tratado de Pedras Altas, colocando um fim à guerra.