Por Shana Müller
Criadora do Peitaço da Composição Regional
Em setembro de 2023, um grupo de 40 mulheres reuniu-se na Fazenda São Francisco do Pinhal, em Júlio de Castilhos. Esse foi o terceiro ano em que o Peitaço da Composição Regional (acampamento e oficinas) movimentou-se no caminho de buscar aumentar o repertório criado por mulheres no cenário da canção regional e identitária do sul do país.
E foi assim mesmo que surgiu: do questionamento. Por que as mulheres, ainda em pleno século 21, seguem retratadas de forma tão equivocada nesse universo cancioneiro? E o diagnóstico: são o retrato externo, da visão masculina, em suas representações artísticas. O evento nasce para equilibrar essa balança, no suporte e na qualificação dos processos criativos das mulheres na cena regional gaúcha, ou que por ela se interessem.
Foram quatro dias de imersão nos processos criativos. O fazer arte traz, inevitavelmente, o questionamento e a busca de soluções para uma maior participação das mulheres nessa cena. Historicamente, a música feita aqui, como expressão das tradições e do folclore, tem como pilar a figura masculina. O gaucho, figura máscula e bravia que habitou essa parte do mundo. A mulher, por sua vez, é coadjuvante na história contada, quando não invisível.
Por que as mulheres, ainda em pleno século 21, seguem retratadas de forma tão equivocada nesse universo cancioneiro? E o diagnóstico: são o retrato externo, da visão masculina, em suas representações artísticas.
Na constituição do tradicionalismo gaúcho, o processo foi semelhante. No “grupo dos oito” que deu início ao que hoje entendemos como a tradição – e as próprias festividades da Semana Farroupilha de todos os setembros –, as mulheres não estavam incluídas. Mesmo que hoje sejam elas as estudadas prendas, levou quase 50 anos para uma mulher assumir as rédeas de tal movimento.
Quando pensamos e pesquisamos a presença da mulher como autora no repertório nativista, movimento surgido com a primeira Califórnia da Canção, em Uruguaiana, em 1971, percebemos sua quase inexistência.
É fato que a falta de oportunidades e a própria visão masculina sobre o que retrata a identidade gaúcha, como o campo e suas lidas, as guerras e suas batalhas, reservaram sempre a mulher o papel da interpretação das temáticas escassas do amor. Nunca nos coube retratar as cenas de um Estado pastoril comandado pelo homem, por mais que essa não seja a realidade.
Em contraponto, nos inúmeros festivais nativistas infantis que são realizados por todo o Estado, as meninas são maioria no palco. Para onde elas vão depois?
Nos inúmeros festivais nativistas infantis que são realizados por todo o Estado, as meninas são maioria no palco. Para onde elas vão depois?
Elas estão em maior número, mas não têm presença como parte do processo de criação das canções, da forma entendida como “correta” e “apropriada” de fazer a música representativa do Sul. Afinal, onde estão nossas canções?
E essa não é, infelizmente, uma exclusividade gaúcha. Essa realidade se assemelha ao que se vê por todo o Brasil e a América Latina. Na Argentina, em 2019, uma lei determinou que 30% do line-up dos festivais do país fosse composto por artistas mulheres, numa política de cotas como caminho de solução dessa invisibilidade.
Se buscarmos por dados da produção artística feminina na música brasileira, também são escassos os registros. A União Brasileira de Compositores (UBC), sociedade arrecadadora de direitos, capitaneia um projeto chamado Por Elas que Fazem a Música, nos apresentando dados que corroboram com a falta de equilíbrio de gênero na produção musical, analisando e observando eventuais mudanças ao longo dos anos.
Apesar da crescimento do número de associadas na UBC desde 2018, ainda somos apenas 16% do número total. E aqui estamos falando somente de uma sociedade de direitos autorais. O total distribuído para as mulheres igualmente cresce pouco e ainda representa apenas 10% dos valores de direitos autorais. Entre as associadas, 77% se concentram no Sudeste e Nordeste do país, corroborando ainda mais com a preocupante ausência das mulheres na cena do Sul.
Na distribuição de direitos, os números mínimos reforçam a necessidade de movimentos como o Peitaço na busca de espaços e também na qualificação, no aumento da produção e no desengavetamento de trabalhos já criados que lá estão por serem diferentes dos padrões estabelecidos nas canções regionais.
Em tempos de culto às tradições e referenciamento histórico, é importante trazer à tona questionamentos como este: as invisibilidades na representação cultural do Rio Grande do Sul, não apenas das mulheres, mas de negros e indígenas.
É preciso um setembro de conscientização de silêncios e de movimentos que tragam à luz as importantes contribuições artísticas e sua diversidade no cancioneiro regional gaúcho, sobretudo a urgente necessidade de diálogo com os tempos atuais. Aquelas mulheres silenciadas nos saraus de suas casas, com pianos e poemas, querem ganhar os palcos, os discos, os CTGs, os espaços que lhes cabem.
Fica o nosso manifesto.