Mario Vargas Llosa havia enviado recado antes da entrevista por telefone que concederia na última segunda-feira. Falaria pouco, por causa de uma bronquite – e porque ainda teria que dizer algumas palavras na entrega do prêmio Living Legend Award da Biblioteca do Congresso americano, no mesmo dia. Depois que a conversa começou, no entanto, falou por mais de meia hora, sempre pronto a se entusiasmar com os temas discutidos.
Prêmio Nobel de Literatura em 2010, o escritor peruano, que completou 80 anos em março, estará em Porto Alegre no dia 11 de maio para conferência no ciclo Fronteiras do Pensamento. É sua segunda participação – a primeira se deu logo após o anúncio de seu nome como Nobel.
No fim dos 1950 e início dos 1960, Llosa fez parte da brilhante geração que pôs a América Latina no mapa da literatura – que incluía nomes como o colombiano Gabriel García Márquez, o chileno José Donoso, o mexicano Carlos Fuentes, o paraguaio Augusto Roa Bastos e mesmo o argentino Julio Cortázar, já conhecido antes do boom. Gradualmente, suas percepções políticas foram se afastando das de seus colegas, majoritariamente de esquerda. Ele tem uma visão identificada com o liberalismo e chegou a concorrer à presidência do Peru em 1990 pelo partido Movimiento Libertad. Como pretende discorrer na sua palestra, contudo, o escritor não considera a economia sem amarras como o centro do verdadeiro liberalismo. Para ele, a cultura deve ter o papel de matizar essa visão.
O Fronteiras do Pensamento é apresentado por Braskem, com patrocínio da Unimed Porto Alegre e parceria cultural da PUCRS. Empresas parceiras: Liberty Seguros, CMPC Celulose Riograndense, Souto Correa e Sulgás. Parceria institucional: Fecomércio e Unicred. Apoio institucional: UFCSPA, Embaixada da França e prefeitura de Porto Alegre. Universidade parceira: UFRGS. Promoção: Grupo RBS. Veja a programação completa do ciclo de conferências e informações sobre ingressos em bit.ly/fronteiras-2016
Leia mais:
David Grossmann: "Em Israel, nenhum de nós experimentou até hoje um dia de paz"
Romero Britto: "Nem todos podem ir ao museu, mas muitos podem ter um relógio com a minha arte"
Em sua conferência no Fronteiras do Pensamento em 2010, o senhor falou sobre o que considerava a perda de um norte na cultura e a transformação da arte em produto de entretenimento. Qual será o tema desta sua segunda palestra?
Minha intenção é expandir essa ideia de que em nosso tempo não apenas a arte, mas a cultura em geral está se orientando cada vez mais em direção ao entretenimento, à diversão. Algo que alguns críticos aplaudem, porque consideram que desta maneira a cultura está se democratizando, mas outros, eu entre eles, vemos com preocupação, porque parece que essa expansão para o entretenimento também significa uma trivialização da cultura, que perde a função crítica muito importante que exercia diante das instituições, da sociedade, do poder e dos poderes.
Mas o senhor, um homem de ideias liberais, não reconhece nesse fenômeno a própria aplicação da lei de mercado à cultura?
De certo modo, você tem razão. Mas creio que o verdadeiro liberalismo não crê no mercado como uma panaceia que resolve absolutamente tudo. Há coisas que têm um valor, ainda que tenham preços muitos diferentes diante das puras leis do mercado. Esses valores são justamente os que a cultura identifica e estabelece, e seu preço não pode ser medido no mercado. Creio que isso toca o ponto essencial de uma ideia equivocada e puramente economicista e mercantil da cultura que, em minha opinião, não corresponde ao verdadeiro pensamento liberal. Creio que esse é o tema capital: fazer a distinção entre valor e preço, uma distinção que só é feita por uma cultura que se reconhece como acima dos vaivéns do mercado, das transações mercantis. Não se pode julgar obras de arte, literárias, em função dos valores do mercado, porque os best-sellers, por exemplo não são necessariamente grandes obras de arte.
Ou seja, o senhor defende a manutenção de um cânone. Mas quem o escolheria, uma vez que hoje não se aceitam mais noções estabelecidas de uma hierarquia de cima para baixo?
Justamente por isso temos que defender a existência de uma elite cultural. A atitude antielitista, que me parece muito justificada em questões políticas, não se justifica no campo da cultura. Não é verdade que a cultura possa ser entendida da mesma maneira por todos. Há certos tipos de obras que exigem uma formação primária para serem apreciadas. Não se pode pedir a todo mundo que possa desfrutar do Ulisses, de Joyce, ou da tetralogia O Anel do Nibelungo, de Wagner. Creio que é necessário estabelecer certas hierarquias e aceitar a existência delas, mas isso está se perdendo. E esse é um problema basicamente cultural: as elites não se reconhecem, estão marginalizadas, em muitos casos confinadas em campi universitários. E por isso temos essa confusão de valores que faz com que no campo da criação, da literatura, das artes, já não se saiba o que é excelente, o que é bom, o que é mau e o que é execrável.
Isso se reflete na perda de importância da figura do escritor, por exemplo? Ou na capacidade de transformação da literatura?
Exatamente. Porque a literatura de entretenimento é de consumo rápido, não deixa rastros, não tem efeitos sociais, políticos, filosóficos ou morais. Também é preciso frisar que um dos grandes problemas culturais do nosso tempo é o desaparecimento da crítica. A crítica servia para nos orientarmos nessa espécie de selva que é a oferta cultural enorme e massiva de nosso tempo. E permitia estabelecer o que era importante, o que era menos importante e o que não importava de maneira alguma. Hoje em dia, a crítica praticamente desapareceu, está relegada a um mínimo invisível nos meios de comunicação. E há uma crítica universitária que é hermética, para um grupo pequeno. A isso se deve a enorme confusão que existe e o fato de que, comparada a essa literatura de consumo rápido e generalizado, a outra literatura, a criativa, de ideias de questionamento da realidade e da sociedade, não seja sempre devidamente apreciada.
Como o senhor analisa o atual quadro da política latino-americana?
Creio que houve mudanças positivas, como na Argentina. E me entristece muito o que ocorre no Brasil. Havia grandes esperanças de que o país iria finalmente decolar, e agora descobrimos que não, que havia problemas sérios de corrupção que criaram uma crise política de enorme magnitude. Mas o que é importante na América Latina, vendo o conjunto da região, é que temos progredido. Se compararmos com o que foi no passado, hoje em dia praticamente não temos as ditaduras militares que foram a praga do continente. E ditaduras propriamente temos Cuba e Venezuela, mas o resto da América Latina tem governos civis nascidos de eleições. Creio que há consensos muito fortes hoje, não mais a favor de ditaduras ou de utopias coletivistas, isso parece ter ficado para trás, substituído por um convencimento e uma resignação sobre a cultura democrática, a cultura da coexistência. Temos governos de direita e de esquerda que são democráticos, o que é uma novidade. Fazendo as contas, há mais motivos para otimismo do que para pessimismo.
O senhor falou de Cuba. Como vê o “degelo” das relações entre a ilha e os Estados Unidos, sacramentado recentemente com uma visita de Obama ao país dos Castro?
Penso que é a melhor demonstração do fracasso da revolução cubana. Agora Cuba espera que os Estados Unidos ajudem a sair da pobreza e do isolamento em que se encontra. E muitos cubanos pensam também que, se houver progresso econômico, será inevitável o progresso político, com uma maior abertura. Mas o que isso significa de fato é o fim da revolução. Quem pode pensar em nossos dias que a revolução cubana possa ser um modelo para alcançar progresso e justiça social, como acreditávamos há 40 anos? Ninguém. Outro caso trágico é o da Venezuela, em que o populismo fez muitos estragos, criou uma semiditadura e levou o país potencialmente mais rico da América Latina ao caos, à hiperinflação, a uma violência criminal terrível, já que Caracas é uma das cidades mais perigosas do mundo, e sobretudo à fome. Claramente, o que se chamou “socialismo do século 21” está em crise terminal e não creio que seja mais modelo para nada, como muitos ingênuos acreditaram há 15 anos.
Em um dos ensaios de seu livro Sabres e Utopias, o senhor definia dois tipos de esquerda na América Latina: o socialismo do século 21, que o senhor identifica com Chávez na Venezuela; e uma esquerda de atuação no sistema democrático. Como vê esse quadro hoje?
Creio que ainda é a realidade, com a diferença de que a esquerda chavista padece de uma crise terminal. O que temos é uma esquerda que se democratizou. O caso do Uruguai é muito interessante, porque é um país que teve uma esquerda radical que, no poder, respeitou a democracia e levou a cabo algumas reformas que poderíamos chamar de liberais, respeitando a economia de mercado. É um exemplo interessante de uma esquerda moderna que respeita as instituições. O mesmo ocorreu no Chile, com o governo da Concertación. Isso está dando maior estabilidade à América Latina. O caso do Brasil também é emblemático, porque não tínhamos ideia de que a esquerda brasileira estava tão afetada pela corrupção. Essa corrupção é um dos males endêmicos da América Latina, presente em todas as partes, e esse é um dos temas que devemos enfrentar de maneira mais enérgica, porque pode minar as instituições e as bases do sistema democrático.
Mas o senhor e outros de seus contemporâneos do boom latino-americano escreveram denunciando ou satirizando o caráter corrupto da própria formação das instituições do continente. É tão diferente hoje?
A corrupção cresceu consideravelmente, estava antigamente mais limitada e na época moderna alcançou uma magnitude que não se podia imaginar antes. É o grande problema contemporâneo, não somente nos países de terceiro mundo, mas nos de primeiro, está criando uma situação de crise tremenda, inclusive em países de tradição democrática sólida. Mas é verdade que, durante as ditaduras na América Latina, isso não sai à luz, porque a corrupção age na sombra. Com democracia, liberdade de expressão, imprensa livre, tudo isso vem à tona. O que é interessante, porque mostra uma evolução se comparado com o silêncio considerável sobre o tema no passado. Trazer o problema à luz é um começo de solução.
O que o Nobel mudou na sua vida?
Bom, de um lado, o Nobel faz de você uma figura muito pública, e é preciso se defender mais para ter tempo e poder trabalhar e escrever. E depois, há essa ideia generalizada de que o Prêmio Nobel é como a morte do escritor, ele é entronizado e morre. Estou fazendo todo o possível para provar que não é o meu caso, que estou vivo, apesar do Nobel (risos).
Durante sua última passagem por Porto Alegre, o senhor afirmou que andava “lendo mais os mortos do que os vivos”. Ainda é assim?
Também leio alguns vivos, mas é verdade que, com os anos, você se torna mais exigente na hora de eleger suas leituras. Quando era jovem, me sentia moralmente obrigado a ler do princípio ao fim todos os livros que me caíam às mãos. Agora, se um livro não for capaz de reter meu interesse, não o leio. Mas eu leio, sim, contemporâneos, não apenas os mortos, mas tomando algumas precauções, porque, na minha idade, já sei que não terei tempo para ler todos os livros, como acreditava quando era jovem.
Quais contemporâneos?
Tenho lido alguma coisa de latino-americanos e espanhóis interessantes. Terminei há pouco o último romance de Juan Gabriel Vásquez (escritor colombiano). La Forma de las Ruinas é um romance ambicioso e muito bem trabalhado sobre dois grandes assassinatos políticos na história da Colômbia, e a partir deles se faz uma investigação muito sutil e profunda da política e da cultura entreveradas, das relações entre verdade e mentira tanto no mundo da ficção quanto no mundo da política. Li também o novo livro do (espanhol) Javier Cercas, autor de Soldados de Salamina, que considero um dos melhores romances dos últimos anos em espanhol. O livro que li se chama El Punto Ciego, é um ensaio sobre o romance como gênero, também muito interessante, com uma teoria de que todo romance é uma pergunta, um questionamento, uma interrogação que não tem resposta, ou seja, a resposta é a própria novela, a própria história. E, a partir dessa teoria, Cercas faz análises muito interessantes de Dom Quixote, de Moby Dick, dos contos de Kafka.
No que está trabalhando no momento?
Estou escrevendo um ensaio sobre o pensamento liberal, de que se tem uma ideia equivocada, confinada ao aspecto econômico. Se formos pensar bem, é o marxismo tradicional que tem na economia a explicação de tudo o que ocorre histórica e culturalmente. Essa é uma grande falácia. Estou escrevendo um ensaio sobre grandes pensadores liberais e mostrando como todos foram, por mais que houvesse diferenças entre eles, muito preocupados que prevalecesse a legalidade sobre qualquer política econômica. Como era importante que a lei, inspirada em valores éticos, organizasse esse sistema de inter-relações que é o mercado, e como o mercado só contribuía decisivamente para o progresso humano à medida que funcionasse a partir de uma legalidade, o que não significa de maneira alguma a existência de um mercado selvagem sem normas e em que vale tudo, como muitos chegaram a crer. Creio que, se desaparecem os valores, desaparece o que é o fundamento mesmo do pensamento liberal.
O senhor fala de uma arte com valores morais. Mas há grandes obras que partem de um ponto de vista transgressor à moral, ou mesmo amoral.
Sem dúvida, mas, de todo modo, essas obras nos enfrentam, nos forçam a uma visão crítica dos valores nos quais cremos que está fundado o progresso e nossa civilização. Penso que a boa literatura é sempre moral, ainda que opere de uma maneira que, a princípio, não nos pareça de acordo com o que entendemos por moral. Toda literatura que é autêntica, criativa, é uma literatura de agitação, de revolução contra certos princípios ou valores que nos motivam, para exercer sobre nós mesmos uma revisão crítica.
Que lembranças guarda das visitas anteriores a Porto Alegre?
Muito boas lembranças. Me surpreendi com a magnitude e com a quantidade de gente que participou da conferência que proferi na última passagem por aí. E me recordo de haver estado em Porto Alegre imediatamente depois de receber o Prêmio Nobel. Tinha o compromisso para falar aí e embarquei para a cidade logo depois do anúncio. Em certo sentido, posso dizer que a cidade me trouxe sorte (risos).