A ação judicial de reconhecimento de maternidade socioafetiva foi ajuizada em setembro do ano passado no Foro Regional do Partenon, na Capital. Nesse período de um ano e dois meses, o pedido passou pelo Ministério Público - que deu parecer favorável, mas, antes, designou uma audiência. Nela, mães e testemunhas foram ouvidas pela juíza - a menina, não. Segundo Freitas, é raro que a Justiça chame uma criança, para não causar nenhum tipo de trauma.
Entre os documentos reunidos para comprovar a união e a relação de maternidade da mãe não biológica, estão cartões de Dia das Mães, trabalhos de escola e o diário da criança. Fotografias retrataram a família formada pelas três, desde o nascimento da menina até os dias de hoje. Além disso, depoimentos de testemunhas teriam reforçado a relação e o teor "público" do relacionamento, fator importante levado em consideração pela Justiça.
- O conteúdo foi suficiente para que a juíza entendesse que a menor, do ponto de vista biológico, era filha de uma das autoras e, do ponto de vista afetivo, filha da outra autora, pois compartilharam durante anos todas as obrigações que envolveram o sonho de trazer ao mundo essa criança, suportando em igualdade de condições todas as responsabilidades materiais e morais dessa decisão - explica Fernanda.
Entenda o caminho judicial:
O que é a maternidade socioafetiva?
A parentalidade socioafetiva (maternidade ou paternidade socioafetiva) é aquela calcada no princípio da afetividade. Estabelece relação de parentesco baseada em outros fatos que não a relação genética: o afeto, a convivência, o tratamento perante terceiros como se filho fosse (publicidade da relação) e o exercício efetivo dos direitos e deveres inerentes ao poder familiar. Enfim, um conjunto de circunstâncias que exteriorizam o desejo de ser pai ou mãe afetivo.
A paternidade/maternidade sociológica é um ato de opção, fundada na liberdade de escolha de quem ama e tem afeto. Atualmente, paternidade, maternidade e filiação não decorrem exclusivamente de informações genéticas e biológicas. A visão moderna do direito de família é a da existência de um núcleo familiar unido por relações de afeto, solidariedade e amor, buscando a realização da dignidade da pessoa humana através de outras formas de família que igualmente merecem a proteção do Estado.
Casais heterossexuais também podem ter parentalidade socioafetiva reconhecida?
Sim. A parentalidade socioafetiva ocorre tanto nas famílias de casais heterossexuais como nas de casais homoafetivos (formados por pessoas do mesmo sexo), pois o que importa é o vínculo afetivo e os cuidados de quem age como se pai ou mãe fossem, e independe da opção sexual dos envolvidos. A incidência, porém, nas relações homoafetivas vêm aumentando, principalmente, pela adoção de técnicas de reprodução assistida.
A parentalidade socioafetiva pode originar-se de várias situações como, por exemplo, a posse de estado de filho, adoções à brasileira (adoção irregular, quando se registra filho alheio como próprio), por filhos originados de reprodução assistida, da relação de padrastos e madrastas. Pode, inclusive, ser reconhecida após a morte, quando se provar que existia, com o falecido, convivência afetiva apta a autorizar a existência de socioafetividade.
Há jurisprudência para esse tipo de caso?
A parentalidade socioafetiva é bem aceita na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e dos tribunais estaduais. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem reconhecido a filiação socioafetiva em diversos casos há muitos anos. Em fevereiro, por exemplo, decidiu que uma criança teria o nome do pai e de duas mães. Hoje em dia, as decisões que envolvem casais do mesmo sexo têm sido mais frequentes. O Supremo Tribunal Federal (STF) já se pronunciou a respeito do reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar.
O que torna essa nova decisão do TJRS diferente?
O que torna essa decisão tão peculiar é que ela se deu no seio de um relacionamento homoafetivo no qual as companheiras desejaram em comum acordo ter essa filha, para que ambas fossem as mães, independente de uma delas não ceder qualquer material genético para tanto. O pai da menor fez parte desse acordo e não efetuou o seu registro. Na prática, ambas formaram uma unidade familiar e exerceram de forma compartilhada e harmônica as funções de mãe.
Fonte: advogada Fernanda Pacheco Nácul, especialista em Direito da Família