
O charme das gaúchas é reconhecido ao redor do mundo. Mas foi uma musa líquida quem roubou a cena entre homens e mulheres nas pouco mais de duas semanas em que a Copa do Mundo tomou conta de Porto Alegre.
Embriagados de futebol, brasileiros e estrangeiros assistiram aos jogos, brindaram vitórias e choraram derrotas com uma parceira em comum: a cerveja. Somente nas áreas mais movimentadas da capital gaúcha durante o Mundial, como alguns bares da Cidade Baixa, do Centro e do bairro Moinhos de Vento, além do estádio Beira-Rio, fan fest, Acampamento Farroupilha e ao longo do Caminho do Gol, foram consumidos mais de 700 mil litros da bebida entre 12 e 30 de junho, segundo levantamento realizado por Zero Hora. Para reunir os dados, a reportagem conversou com proprietários e gerentes de bares nesses pontos mais frequentados durante a Copa.
O número, que exclui parte significativa do consumo, como as vendas dos supermercados - que, conforme a Associação Gaúcha de Supermercados (Agas), registraram aumento médio de 120% em relação a junho do ano passado - supera em mais de 100 mil litros o da maior orgia cervejeira do país: a Oktorberfest de Blumenau, em Santa Catarina. Durante 18 dias da maior festa brasileira da cerveja, os frequentadores beberam 600 mil litros em 2013.
- O caso de Porto Alegre é surpreendente se pensarmos que a Oktoberfest é uma festa dedicada à cerveja, enquanto a Copa é dedicada à torcida e à alegria. É um número bastante elevado, ainda mais que aí está frio - diz Adalberto Viviani, presidente da consultoria paulista Concept, especializada em alimentos e bebibas.
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De acordo com o consultor, o aumento médio das vendas no país esperado pelo setor estaria na casa dos 15%. O número representaria o equivalente ao consumo de verão, só que nos meses de inverno, já prevendo um boom nas cidades-sede do Mundial.
Em Porto Alegre, a movimentação turística que contribuiu para o sucesso da loira gelada se concentrou em pontos específicos. No Centro, o Chalé da Praça XV e o Boteco Natalício viram o consumo alavancado pela Copa, especialmente no inesquecível Holanda x Austrália.
- Três dias antes, os holandeses vieram perguntar se podíamos abrir às 7h. Às 8h30min, o bar já estava lotado - lembra Alexandre Pedó, um dos donos do Chalé, que também foi palco da concentração e da festa francesas no dia da partida contra Honduras.
Já o Natalício quase não deu conta de saciar a sede dos holandeses após a vitória contra a Austrália. O chope, a cerveja, a cachaça e a comida acabaram à meia-noite. O jeito foi fechar as portas.
Não foi à toa que a passagem dos gringos impressionou alguns donos de bares. Sete dos nove países cujas seleções jogaram em Porto Alegre estão entre os 40 maiores consumidores de cerveja do mundo, segundo um estudo da empresa alemã Bath-Hass Group: Alemanha (3º), Austrália (7º), Holanda (14º), Argentina (27º), Coreia do Sul (29º), França (35º) e Nigéria (39º). Os brasileiros não ficam para trás, ocupando a 17ª posição do ranking.
Na Cidade Baixa, que virou a Meca de muitos torcedores após os jogos, vários bares da Rua General Lima e Silva mais que dobraram a venda de cerveja durante a Copa em Porto Alegre. Sobrou clientela até para quem é nanico no segmento.
Com um trecho da Lima e Silva fechado para os torcedores nos dias de jogos do Brasil e em Porto Alegre, Vanessa Cruz da Silva não viu escolha: encomendou um refrigerador a mais para acomodar os latões de cerveja na pequena tabacaria que administra com a mãe, à esquina com a Rua da República. Mas as três geladeiras nem tiveram tempo de trabalhar.
- O dia que mais faturamos foi o dos laranjinhas (holandeses). Impressionou ver que eles tomavam a cerveja quente. Pegavam cinco, seis e saíam tomando sem se importar com a temperatura - conta a empresária, saudosa da Copa na Capital.
A junção de grandes bebedores também se refletiu de forma expressiva no Beira-Rio e na fan fest. Somente nos dois lugares, os torcedores entornaram mais de meio milhão de litros.
O consultor de alimentos e bebidas, contudo, não acredita que os estrangeiros sejam os maiores responsáveis pelo esvaziamento de tantas latas e garrafas na capital gaúcha. Para ele, a mudança de postura dos brasileiros em relação ao Mundial foi o que mais contribiu para o fenômeno:
- As pessoas incorporaram a Copa no cotidiano, começaram a torcer e reverteram o clima que se estabeleceu antes do Mundial, que era de desconfiança. A cerveja é um produto que tem alto grau de legitimidade, reflete o desejo de encontrar as pessoas, de comemorar. Além disso, é a bebida preferida dos brasileiros para comemorações.
No gráfico, veja como foi o consumo de cerveja em diversos pontos de Porto Alegre:
Altas doses na Cidade Baixa
As noites no bairro mais boêmio de Porto Alegre foram inesquecíveis. A Cidade Baixa virou uma Babel movida a cerveja, chope, caipirinha e gols. Da mistura etílico-linguística nasceram histórias que ficarão para o folclore da cidade.Veja algumas:
Malandragem argentina
Um costume comum de argentinos e chilenos quando bêbados foi subir nas mesas dos bares, com o propósito de tocar de alguma forma com as mãos no teto. Quem não gostou foram os garçons. No bar Pinguim, Rodrigo Bastos, há quatro meses na função, achava chato quando isso acontecia - a vitória chilena de 2 a 0 sobre a Espanha foi um momento particularmente inesquecível em escaladas de mesas e mãos para o alto.
Os argentinos também aliaram muita malandragem à beberagem. Bastos recorda de um grupo que saiu do bar sem pagar nessa partida, depois de se encharcarem de bebida. Ninguém percebeu, até ser tarde demais.
Sem divisão de garrafas
Eles chegavam em quatro - e por que não em cinco ou seis, também - e pediam quatro garrafas de cerveja. De litro, de 600 mililitros... enfim. Eram australianos e holandeses. Não fazem como a gente, que divide a primeira garrafa, depois pede outra. Não. É uma para cada. Na média, analisa o gerente do Big Burger, Thales Sardá Luiz, cada estrangeiro bebia meia dúzia de garrafas no local. A marca preferida até podia ser a Heineken ali no Big Burger, mas no geral os gringos não estavam dando muita bola para rótulos.
- E bebem no bico - completa um garçom.
De cara no chão
Na esquina da República com a Lima e Silva, um australiano empinava garrafa após garrafa de cerveja. Jogavam Estados Unidos e Gana nos telões dos bares. O gringo já parecia tonto. Estava com a cara empapuçada, cada olho parecia mirar um objeto diferente. Então chegaram as suas mãos mais garrafas. Ele verteu, em sequência, outros quatro litros. Então foi de cara no chão. Dizem que até ambulância apareceu para recolher o rapaz. Quem acompanhou ficou chocado. A observação de uma testemunha porto-alegrense foi a seguinte:
- Esses estrangeiros são loucos. São muito mais loucos do que nós.
Em crise, mas sem estresse
Temerários com possíveis conturbações causadas pela massiva presença argentina em Porto Alegre, muitos comerciantes acabaram mordendo a língua. Ao final da "invasão" hermana, destacaram educação e a alegria dos vizinhos - mais "bagunceiros" que os europeus, dizem. Assim como ocorreu com os demais estrangeiros, a passagem dos argentinos foi tranquila na maior parte dos estabelecimentos. O que incomodou mesmo quem queria vender foi a tal crise econômica do país, que acompanhou os conterrâneos de Messi até a capital gaúcha.
- Aqui no bar deu muito argentino, mas eles consumiram bem menos do que holandeses e australianos - lamentou Giovani Cazzanelli, dono do João de Barro, na Cidade Baixa.
Caipinite no Zefinha
Com temática e cardápio inspirados no nordeste brasileiro, o bar Dona Zefinha, na Cidade Baixa, atraiu os gringos que buscavam experiências mais, digamos, étnicas, no país do futebol. Carro-chefe da casa, o chope disputou espaço com as cachaças e, principalmente, com a caipirinha, mais famoso drink brasileiro. Responsável pelas bebidas, Tiana Rodrigues Schaffler nem chegou a ver os holandeses, australianos, franceses e alemães que se abancaram no bar da Rua General Lima e Silva. Mas não se esquecerá tão cedo dos dias que os estrangeiros se esbaldaram com a combinação de cachaça, açúcar e limão.
- Teve uma noite que eu perdi a conta de quantas caipirinhas eu fiz. No outro dia quase não sentia os braços - lembra.
* Colaboraram André Mags e Lara Ely