* Historiador, colaborador do Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos (Diversitas/USP)
O suicídio de Vargas, para o célebre intérprete da brasilidade Gilberto Freyre, seria próprio do caráter espanhol, não do luso, mais afeto à composição. Freyre se perguntava até se o Rio Grande do Sul deveria mesmo integrar a federação brasileira. Ah, tudo bem! A par de insights geniais, ele também se opôs à independência de Angola e de Moçambique de Portugal. E detestava os Vargas, desde a Revolução de 1930, quando sua família figurara entre os perdedores. A ideia, contudo, dá o tom da charada que o gesto dramático de Getúlio representa.
O que normalmente se espera, talvez, dos nossos políticos, quando atolados num "mar de lama", como aquele que o figadal jornalista Carlos Lacerda fez transbordar sobre Getúlio, é que digam que nada sabiam... O paradoxo é revisitado pelo excelente filme de João Jardim, misto de thriller palaciano e drama psicológico, com boa reconstituição de época, fotografia apurada e interpretações convincentes dos atores: garantia de espectador atento até o fim.
O sogro de Getúlio, Antônio Sarmanho, gerente da agência de São Borja do Banco Pelotense, suicidara-se em 1921, quando uma auditoria apontara indícios de fraude em sua gestão. Em 1930, minutos antes de estourar a Revolução que mudaria a cara do Brasil, Vargas escreveu em seu diário, fatalista: "Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso".
No trem que o levaria ao Rio de Janeiro, acrescentava estar decidido a "não regressar vivo ao Rio Grande" como perdedor. Em julho de 1932, quando estourava a Revolução Constitucionalista em São Paulo e pipocavam boatos de sítio ao Palácio do Catete, Getúlio prometeu a Osvaldo Aranha: "Resistirei até o fim!", rascunhando um bilhete sinistro, a ser divulgado à nação na hipótese de renúncia forçada: "Escolho a única solução digna para não cair em desonra, nem sair pelo ridículo".
Getúlio pertencia a um mundo lastreado em princípios de honra. Ali, nenhum promotor lograria a condenação de um réu confesso pelo assassinato da esposa supostamente adúltera. Pegar em armas para defender o partido ou o líder fazia parte do horizonte possível dos homens. Descortino idealista em favor da nação vinha com reverso: a indistinção entre espaço público e privado, vibrada a partir da rede de compromissos, própria do sistema de lealdades e tensões, que vigia entre coronéis, familiares e peões.
Rusticidade e sofisticação se chocavam, como retratara Euclides da Cunha em 1902, ao evocar uma elite litorânea de costas para a realidade dos ínvios sertões enquanto macaqueava as últimas modas de Paris. O elegante Getúlio, rosto sempre escanhoado, transcendendo a colônia, com trânsito desde cedo pelos palácios, nunca abandonou, contudo, o menino rústico da Fronteira dentro de si.
Quando, em agosto de 1932, desembarcaram no Rio gaúchos do 14º Corpo Auxiliar, para reforçar o combate aos paulistas, Getúlio exclamou: "Revejo a minha tribo. É como se eu estivesse em família!". E estava! Aquele grupo de capangas destemidos e de peões arregimentados à força nas estâncias de São Borja era comandado pelo irmão mais moço - Bejo. Ao seu lado vinham, ainda, três sobrinhos e o seu primogênito, Lutero. Afinal, família que se preza guerreia unida! Um negro alto e robusto, filho da cozinheira dos Vargas, dava o tom: "Vamo derrubar os paulista a pata de cavalo e chumbo grosso"! Era Gregório Fortunato.
Getúlio não achou ruim estar o "Quatorze-de-pé-no-chão" bem-armado, com modernas carabinas Mauser, 80 das quais entregues a Bejo, antes da partida de São Borja, por Don Lucas, um guerrilheiro argentino, que cobraria a fatura: "Vamos degolar", gritou Gregório Fortunato, à frente dos milicianos do 14º, quando se somaram aos montoneros sublevados de Don Lucas no ataque, seguido de saque, à cidade de Santo Tomé, em 1933, provocando uma das maiores crises diplomáticas entre Brasil e Argentina que se conhece.
"Não quero crer que Bejo esteja metido nisso. Ele por certo avalia as dificuldades que tal conduta criaria ao meu governo.", escreveu na oportunidade um Getúlio macambúzio ao irmão Protásio.
Surpreender-se com uma guarda presidencial, em 1954, de 80 homens, sob o comando do mesmo Gregório Fortunato? Há dezenas de fotos em que o "Anjo Negro" aparece a um passo atrás de Getúlio, guardando as suas costas. O tiro que acertou o pé de Lacerda alvejou o governo, pelas costas... Gregório podia não entender das manhas políticas, mas precisava pedir?
Getúlio não pediu, em fevereiro de 1932, para os tenentistas incendiários do Clube 3 de Outubro empastelarem o Diário Carioca, do jornalista Macedo Soares, pai da urbanista Lota, que espezinhava a Revolução. E, afinal, o briguento irmão mais velho, Viriato, não mandara em 1915 assassinar o médico Benjamin Torres, que denunciara suas estripulias? O novelo enleado em 1954 começara a ser tecido muito antes.
Nesse mundo de testosterona exacerbada, é perfeito o contraponto representado pela filha Alzira, que, por sua inteligência e competência, tornou-se braço direito do papai-patrão, como que simbolizando a transição da política tradicional estribada na violência para a democracia de massas fundada no debate.
Dizem que o suicídio de Vargas retardou em 10 anos o Golpe de 64. Por que, então, nas eleições de 1954, depois do quebra-quebra que sacudiu o país, no Rio Grande, berço do trabalhismo, venceram os candidatos da oposição a Vargas, alinhados ao velho Partido Libertador e ao conservadorismo católico? Reduzir os sobressaltos da política à ação de forças ocultas pode ser romântico, mas o furo é mais embaixo. Se teses golpistas e revolucionárias povoavam a mente de políticos e militares, à direita e à esquerda, o povo parecia disposto a perseverar na Legalidade, como demonstrou em 1961. Em 1964, entretanto, a massa da opinião pública tornara-se "revolucionária", na esteira de uma conspiração fermentada também por erros de Jango e Brizola.
Por que o homem que rasgara três Constituições (sim, pois a outorgada em 1937 permanecera em suspenso em função do permanente Estado de Exceção) se negou a colocar os tanques nas ruas em 54? "O homem é o homem e a sua circunstância", disse Ortega y Gasset.
Em 1930, Getúlio foi empurrado para a aventura revolucionária por Osvaldo Aranha e João Neves da Fontoura, pois a ordem liberal sempre fora o seu esteio. Durante os anos 1930, pareceu resistir o que pôde ao poder ditatorial que os militares queriam dispor em suas mãos. Se em 1932 hesitou em retaliar o 3 de Outubro, depois do atentado ao Diário Carioca, foi por temer a reação golpista. A cautela custou-lhe aí a amizade de João Neves e de Maurício Cardoso. Em 1934, os mesmos partidários de Góes Monteiro, que o ajudaram a sufocar a Revolução Paulista, ameaçaram-no com um golpe, porque o julgaram excessivamente liberal. Em 1937, o mundo estava diante de uma guerra e o totalitarismo ganhava terreno, à esquerda e à direita.
Quando manifestações de rua se combinam com vandalismo e discurso profilático anticorrupção, a resposta do sistema tende a ser em direção ao fascismo, não à democracia. Getúlio sabia que começar uma revolução, um golpe ou uma repressão era até relativamente fácil. Difícil era sair, lição que os conspiradores de 1964 ignoraram. Encanecido, tinha o direito de não querer entrar para a história como um ditador e, em 1954, faltou-lhe disposição para romper com a determinação de se reencontrar com o Vargas liberal dos anos 1920.
Como ditador, Getúlio censurou, prendeu, mandou e desmandou. Por isso, era odiado por aqueles que patrolara. Mas nunca foi um sanguinário feroz. Seu poder nada tinha de cândido, mas longe estava de ser reduzido a um projeto pessoal. Por reconhecer seu compromisso com a nação, a memória coletiva tende hoje a perdoar os seus arbítrios e a lembrá-lo como um dos nossos maiores estadistas.