
As fundamentações narradas na peça de impeachment contra o prefeito Daniel Guerra (Republicanos), que será votada nesta sexta-feira (20) pela Câmara de Vereadores, compreendem fatos ocorridos em 2019. É inegável, entretanto, que o pedido de cassação, o sétimo em cerca de dois anos, foi resultado de um desgaste iniciado muito antes, e precede até mesmo a relação conturbada com o vice-prefeito eleito, Ricardo Fabris de Abreu, que tornou-se principal antagonista do chefe do Executivo desde o seu rompimento oficial com o governo, quando renunciou ao cargo em 28 de dezembro de 2018.
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Daniel Antônio Guerra iniciou a vida política aos 33 anos, em 2005, assumindo a Secretaria Municipal de Turismo no governo de José Ivo Sartori (MDB). Permaneceu como titular da pasta até 2008, quando deixou o cargo para concorrer a vereador pelo PSDB.
Quando elegeu-se a parlamentar, em 2009, começou efetivamente a carreira política. Reelegeu-se em 2013 e já no primeiro ano do segundo mandato destacou-se com atuação polêmica, sendo expulso pelo PSDB naquele mesmo ano pela postura oposicionista ao próprio partido. Na época, atribuiu a expulsão a "interesses obscuros" e acusou a sigla de "fazer conchavos por cargos".
- Não me submeto ao governo, minha posição é inegociável. Vou continuar defendendo o que for bom para a população até o último dia. Não compactuo com jeitinhos — disse na ocasião.
O episódio marcou publicamente o início da relação de desafetos. Cerca de um mês após a expulsão, Guerra filiou-se ao PRB (atual Republicanos). Pelo partido, na Câmara de Vereadores, iniciou forte oposição ao então prefeito Alceu Barbosa Velho (PDT). Na oportunidade, a maioria do Legislativo era formada por vereadores da base do governo, contexto que gerou fortes atritos na relação entre os parlamentares. Em um dos momentos incendiários, Guerra chegou a acusar Barbosa Velho de ter "as mãos sujas de sangue" após a morte de um idoso registrada no Pronto-Atendimento 24 Horas.
As desavenças se intensificaram e os bate-bocas eram recorrentes entre os vereadores, quando, em junho de 2015, Guerra admitiu a intenção de concorrer a prefeito.
Com postura igualmente polêmica, a campanha e os debates com Daniel Guerra foram marcados por discursos contundentes contra os adversários. A disputa eleitoral consagrou Guerra prefeito de Caxias do Sul em 30 de outubro de 2016 com 148.501 votos válidos, 62,79% do eleitorado.
Mesmo no discurso após a vitória, Guerra não poupou provocações.
— Essa vitória é do povo. Eu convido a todos para que possamos comemorar esse momento dando um grande abraço no prédio da prefeitura. Estamos com esse gesto, devolvendo às pessoas de Caxias do Sul o prédio da prefeitura, como uma forma simbólica, mas profunda, de dizer que será uma prefeitura das pessoas, e não dos partidos políticos - afirmou na época.

Em 1º de janeiro de 2017 inicia o mandato de Daniel Guerra. Dois anos e 11 meses depois, os conflitos se ampliaram. Em sete pedidos de cassação, elementos comuns culminaram num irreversível desgaste: a falta de diálogo do chefe do Executivo com entidades, a relação de embate com o ex-vice prefeito e a falta de conciliação com o Legislativo.
O Pioneiro elencou os principais conflitos que ocasionaram a relação insustentável entre os poderes e a possibilidade de ruptura do processo democrático.
OS PILARES
A relação com o vice
:: Daniel Guerra e e o advogado e servidor público federal Ricardo Fabris de Abreu se conheceram cerca de um ano e meio antes das eleições. Adepto de direita com aspectos de conservador, as características ideológicas foram compatíveis com a linha de Guerra.

:: Em entrevistas, Fabris sempre ressaltou como "obsessão" a proposta de municipalização da polícia, que daria poder de polícia à Guarda Municipal, assim como propostas referentes à política de segurança pública.
:: Ainda no período de transição, um primeiro conflito público: Fabris, que vinha conduzindo a transição na Secretaria de Segurança chegou a anunciar que poderia assumir como titular. Guerra respondeu: "Quem fala pela administração é o prefeito eleito. Em momento algum se cogitou que (o vice) viria a assumir a titularidade, até porque não tem a especialidade para isso ".
:: Na repercussão da época, Fabris admitiu pouco envolvimento com a transição do governo: "Próximo, eu nunca estive. Nunca participei das reuniões de transição, nunca fui informado das decisões que iam ser tomadas nem fui convidado para isso", afirmou.
:: Durante o mandato, Fabris não negou o desejo de assumir a Secretaria Municipal de Segurança Pública, vontade que em momento algum foi cedida pelo prefeito.
:: O distanciamento se agravou, com Guerra inclusive negando-se a viajar para não possibilitar que Fabris assumisse como prefeito, mesmo temporariamente.
:: Em 6 de março de 2017, Fabris encaminha aviso de renúncia ao Legislativo, alegando falta de diálogo com o prefeito e que se sentiu "deixado de lado".
:: Fabris acaba voltando atrás no dia 21 de março do mesmo ano, episódio conhecido de forma pejorativa como "desrenúncia".
:: Em novembro, Fabris novamente protocola pedido de licença do cargo por tempo indeterminado, mas acaba desistindo e propõe renúncia conjunta a Daniel Guerra.
:: Em 17 de dezembro de 2018, Fabris protocola pedido de impeachment contra o prefeito, foi o quinto processo de cassação encaminhado à Câmara. No documento, de 122 páginas, Fabris listou 26 itens em que denunciavam supostas irregularidades.
:: Em 28 de dezembro de 2018, Fabris renúncia oficialmente ao cargo. Na época, comentou: "Tenho a satisfação de informar que afastei-me do que é grotesco". No mesmo dia, Daniel Guerra avalia que o fato "nada altera o bom andamento dos trabalhos que vêm sendo executados pela administração municipal desde o início da atual gestão".
:: Fabris dedica 2019 a se posicionar contra a administração até que em 27 de setembro protocola o sétimo pedido de impeachment, o segundo de sua autoria.
Falta de diálogo e retaliações

A falta de diálogo e articulação com entidades é uma das principais bandeiras defendidas pela oposição. Os atritos, inclusive, embasam as três denúncias votadas procedentes pela Comissão Processante do processo de impeachment na Câmara. Confira alguns dos conflitos mais famosos da administração.
CIC
:: Embora inicialmente tenha recebido apoio manifestado pela entidade, ainda em 2017, as primeiras críticas da CIC começaram a surgir a respeito da gestão. Na época, o então presidente da CIC, Nelson Sbabo, afirmou em reunião-almoço "Caxias do Sul não começou em 1º de janeiro de 2017" em tom crítico à equipe de secretários de Daniel Guerra. Sobre a CIC apoiar o governo municipal, respondeu: "Por enquanto, sim".
:: A ausência de Daniel Guerra em uma reunião de trabalho com representantes da CIC causou desconforto ao presidente Ivanir Gasparin. Na ocasião, o então chefe de gabinete da prefeitura, Júlio César Freitas da Rosa, avisou que o prefeito não compareceria, alegando outros compromissos. "Democracia só existe com diálogo" cobrou Ivanir Gasparin em reunião-almoço com Daniel Guerra.
:: A entidade também lamentou falta de consideração do poder público pela opinião da CIC na organização da Festa da Uva, a não participação na programação do Dia do Vinho deste ano e a mudança de região turística para as Hortênsias.
:: Neste ano, Ivanir Gasparin afirmou que os empresários caxienses estavam "com medo do prefeito".
UAB
:: Pouco mais de um mês após assumir, Daniel Guerra não recebeu comitiva da União das Associações de Bairros (UAB) na prefeitura. Em fevereiro de 2017, após diversas tentativas frustradas, integrantes da entidade foram até o centro administrativo para encontrar o prefeito, mas após duas horas de espera foram avisados de que Guerra não poderia recebê-los. Na época, a entidade comunicou ter se sentido "desrespeitada".
:: No mesmo ano, em setembro, a prefeitura enviou um pedido a 45 associações de moradores (Amobs) e a entidades assistenciais pedindo a devolução de imóveis públicos. A alegação era de que 43 delas estavam em situação irregular.
:: Gradativamente, a rivalidade na relação tornou-se ainda mais intensa. Em junho deste ano, o presidente da UAB, Valdir Walter afirmou que "Daniel Guerra não governa para ninguém" e reclamou da falta de diálogo e "desconsideração" com os bairros de Caxias.
:: Em julho, a prefeitura cobrou na Justiça dívida de R$ 95.222,74 da União das Associações de Bairros (UAB) devido a pendências financeiras com o município.
A PRAÇA

:: A Praça Dante Alighieri, principal referência central de Caxias do Sul, acabou sendo simbólica também como ponto de conflito do poder público. Duas das denúncias votadas pela Câmara de Vereadores no sétimo pedido de impeachment referenciam o local como palco de desavenças: a negativa para cedência da área para realização da Parada Livre e a a Benção dos Freis Capuchinhos. Ambas as situações ressaltaram intrigas com movimentos religiosos e comunidade LGBT. A proibição do uso de espaço público acabou sendo o estopim para reforço do pedido de cassação. As críticas alegam que o poder público agiu de forma intransigente em ambos os casos.
:: Foi também a Praça Dante Alighieri tema de outro conflito, com a maçonaria. No primeiro semestre deste ano, a prefeitura apresentou projeto de revitalização do local. Uma das mudanças seria no próprio traçado, que, visto de cima, compõem-se por um esquadro e um compasso, símbolos da maçonaria. Em outro indicativo da desavença com a maçonaria, a prefeitura retomou posse de um terreno público ocupado pela Loja Maçônica Duque de Caxias, no bairro Exposição, em agosto.
:: A reforma pretendida na Praça Dante Alighieri, no entanto, foi impedida pela Justiça, que afirmou que nenhuma modificação no local poderia fazer qualquer intervenção na praça sem a autorização da Câmara de Vereadores.
:: Ainda há um terceiro conflito que se irradiou a partir da Praça Dante: a ocupação das bancas de jornais e revistas, que a prefeitura pediu de volta aos concessionários. Uma das duas bancas da praça, inclusive, foi demolida. A outra, este mês, passou a receber produtos de agroindústria, deixando de lado projeto aprovado pela Câmara para tornar os espaços bens culturais de valor imaterial de Caxias do Sul. Isto é, não podem ter a estrutura e a destinação alteradas. A última decisão da Justiça é de que os espaços devem voltar à estrutura original, sem descaracterização. Além da banca que restou da praça, a polêmica envolveu outras três: na Rua Marechal Floriano, ao lado da UPA Central, na Praça João Pessoa, em São Pelegrino, e na Rua Alfredo Chaves, ao lado da prefeitura.
OUTROS CONFLITOS
:: Vereadores: além das desavenças herdadas do período em que atuou como parlamentar, a falta de diálogo foi reclamação contínua no plenário. A inexistência de reuniões institucionais e o alto número de vetos a projetos aprovados (30 desde o início do governo) decretaram a má relação entre os poderes.
:: Saúde: O "desprezo" pelo Conselho Municipal de Saúde para fechamento do Pronto Atendimento 24 horas, o Postão, é um dos itens do pedido de cassação e demarca o conflito gerado com o conselho deliberativo em relação às decisões de fechamento da unidade e mudança administrativa do local para gestão compartilhada.
:: Cultura: o descontentamento de produtores e agentes culturais também foi assunto recorrente. A falta de avanços na ocupação do prédio da antiga Metalúrgica Abramo Eberle S.A. (Maesa) e restrições no Financiarte (com redução de valor e de contemplados) foram notórias. O corte de investimentos ao carnaval de rua também foi uma decisão controversa e protestada pela comunidade carnavalesca do município.
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