
Quais palavras te surgem à mente ao ouvir falar em favela? Não precisa responder, mas foi justamente para mudar as associações mais comuns que a população do asfalto faz da vida e dos moradores do morro que o carioca Cosme Felippsen, 29, criou o Rolé dos Favelados, passeio turístico-sociocultural pelo Morro da Providência, comunidade que se orgulha de ser a primeira favela do Brasil, com uma história tão rica quanto desconhecida dos milhões de visitantes da Cidade Maravilhosa.
Povoado a partir de 1897 por soldados que regressaram da Bahia após a Guerra de Canudos, reivindicando as terras prometidas pelo governo federal tão logo a missão fosse cumprida, o Morro da Providência, na Região Portuária do Rio de Janeiro, se assemelhava ao Morro da Favela, que os soldados conheceram em Canudos (tinha esse nome por ser repleto de favelas, um arbusto espinhento comum no sertão nordestino). Com o passar do tempo, favela passou a designar as comunidades que cresceram em morros periféricos não apenas geograficamente, mas também em representatividade, por serem historicamente desassistidos pelo poder público (e por isso, na maioria das vezes, tomados pela violência). Foi com o objetivo de combater o estereótipo da favela como área resumida à miséria e criminalidade que Fellipsen, guia de turismo por formação, guiou mais de 4 mil pessoas em seu rolé (e não rolê, como se diz no Sul).
— Favela não é violência. Ela é violentada diariamente, isso sim. É o espaço onde o Estado aplica o seu abandono. A única forma que o Estado está presente na favela, salvo raras exceções, é de mão armada. No Morro da Providência não há uma creche, nem escola. Todas estão no pé do morro. Quando morre alguém na favela, a primeira coisa que os moradores fazem é pegar a carteira de trabalho do morto e mostrar: "ele era trabalhador!". Porque talvez apenas 1% dos moradores da favela esteja envolvido com consumo ou tráfico de drogas. E mesmo esse varejista de droga, ao meu ver, trabalha para uma empresa que vende um produto cujo comprador, muitas vezes, mora na Zona Sul. O dia que o favelado não descer o morro para trabalhar nos prédios, nas mansões ou nas empresas, a cidade irá parar quase por completo. Porque somos nós que produzimos e construímos não apenas as favelas, mas também a cidade — analisa Felippsen, nascido, criado e morador do Morro do Providência.

Arte, samba e resistência
A caminhada, que normalmente ocorre aos sábados, parte da Central do Brasil e passa por lugares históricos da zona portuária, onde também estão os morros do Pinto, da Conceição e do Livramento, berço do escritor Machado de Assis. Entre os pontos de visita estão o Cais do Valongo, porta de entrada para cerca de um milhão de escravos trazidos da África para o Brasil, e o Memorial dos Pretos Novos, sítio arqueológico considerado o maior cemitério de escravos da América. Ao deixar o asfalto rumo ao morro, chega-se às escadarias que conduzem à Providência, onde a excursão fica ainda mais interessante.
Intercalando fala, poesia e música (Cosme também é cantor e toca pandeiro), o guia conduz os visitantes por entre becos e vielas que levam a espaços como o Centro Comunitário Casa Amarela, pequena edificação coberta por intervenções artísticas, transformada em um espaço cultural e de convívio para atender à crianças e adolescentes da comunidade. Em 2017, o lugar ficou mundialmente conhecido ao ser visitado pela cantora Madonna, que estava no Brasil para um casamento e atendeu ao convite do artista francês JR, um dos idealizadores do projeto social e amigo da popstar.
De frente para a Casa Amarela, separada por uma pequena praça de concreto onde as crianças se reúnem para jogar bola, fica a Igreja de Nossa Senhora da Penha. Erguido nos primeiros anos da povoação do Morro da Providência, ainda no século 19, o santuário apresenta traços da arquitetura colonial e é um ponto de encontro dos moradores, além de preservar a história daquele lugar tão modificado ao longo de mais de um século.

Pouco mais adiante fica o Oratório da Providência, construção igualmente antiga que se assemelha a um grande capitel. Construído no topo do morro, o campanário foi a principal referência geográfica do Rio de Janeiro para os navegantes que chegavam à Baía de Guanabara até a construção do Cristo Redentor, em 1922. Hoje ladeado por diversas casas, perdeu destaque na paisagem, embora resista com seu valor histórico.
Mais um pouco de caminhada e chega-se a um mirante na chamada região da Bica, que oferece uma ampla vista da Baía de Guanabara. É um dos locais onde os moradores convivem com a constante ameaça de remoção por parte da prefeitura, em nome de um tal progresso que nunca subiu o morro. Ali, mostrando as casas marcadas pelo letreiro SMH (Secretaria Municipal de Habitação) para remoção, Cosme (ao centro, na foto abaixo)conta sobre a luta da comunidade para garantir seu direito à moradia e das tantas lutas diárias de quem vive num local marcado pelo descaso. Há dois anos, por exemplo, o Morro aguarda a reativação do teleférico que leva até a Central do Brasil, o que limita seriamente a mobilidade dos moradores.

Como a vida na favela não é feita só de tijolos e pedras, literais ou metafóricos, ao final do rolé chega-se ao famoso Bar da Jura, onde rola o igualmente conhecido Samba da Providência. Com vista privilegiada da cidade, o bar e a roda de samba atraem dezenas de moradores e visitantes a cada final de semana, muitos deles atraídos pela irresistível feijoada da Dona Jura.
— Digo que o rolé dos favelados é um guiamento de militância. Pode-se dizer que a gente faz turismo, mas, mais do que isso, é uma aula a céu aberto. Um debate que gera um questionamento e até um constrangimento dos visitantes. Parte da minha preocupação é levar as pessoas a repensarem que caminhada é essa que eles estão fazendo numa favela. É importante vir aberto a ouvir e entender, a enfrentar seus medos e preconceitos — finaliza Cosme.
Mais
Mais informações, além de datas e horários das próximas edições, podem ser conferidos na página Rolé dos Favelados, no Facebook. O valor do passeio é de R$ 30.
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