A força reduzida nas pernas, que devido à má formação congênita na coluna nunca puderam caminhar, Roberta Spader tem multiplicada nos braços fortes e ágeis de dançarina e na mente inquieta e irresignada. Aos 33 anos, ostenta um currículo acadêmico e de experiência de palco capaz de arrepiar quem possa acreditar na dança como arte reservada a corpos atléticos e ditos perfeitos. Não por acaso, essa desmitificação é uma cruzada que a caxiense do bairro Petrópolis tem encarado com sucesso.
Desde o berço estimulada a brincar sem restrições, Roberta já fez muito mais do que qualquer um pode imaginar ao conhecer a moça de baixa estatura e muletas sob os braços: nado, surfe e basquete são só alguns dos exemplos que precedem a dança, este um sonho realizado graças à ajuda de uma professora de Educação Física igualmente destemida, chamada Renata Goulart.
– Quando eu era criança a ideia que se tinha do deficiente era outra, a gente ganhava aquela cartinha do médico para poder ser dispensado da Educação Física. Mas eu sempre fui muito ativa, adorava ir pro mar, rolar na grama, e por isso a Renata me estimulou a participar das aulas. Fui aprendendo vários esportes, até a hora em que só faltava mesmo saber dançar – recorda Roberta.
Foi quando entrou em cena o bailarino Luiz André Cancian, da Cia. Municipal de Dança. Tocado pela insistência da espectadora assídua dos espetáculos e oficinas, o dançarino aceitou o desafio de ensiná-la a dançar, mas não igual às dançarinas que ela via no Faustão. Cancian levou a pupila direto para o estilo contemporâneo, que tem uma das principais características as sequências de chão. A dupla também descobriu que com cadeiras de rodas utilizadas para o basquete adaptado seria possível ganhar mais agilidade. Aos poucos, a evolução de Roberta passou a chamar a atenção no círculo artístico da cidade e vieram os primeiros convites para apresentações. Enquanto isso, ela concluía a graduação em Administração de Empresas.
Danceability e corpos diversos
A trajetória de Roberta Spader se misturar com a de tantos educadores não é por acaso e está longe de terminar. Mas para manter a cronologia, em 2009 Cancian se mudou para a Capital, o que deixou as atividades e o aprendizado de dançarina estagnados. Surgiu então a bailarina e coreógrafa Carla Vendramin, caxiense que retornava após oito anos em Londres e lá estreitou os laços com um método chamado danceability _ trocadilho com as palavras dance (dança) e deficiência (disability) _, que promove a interação entre pessoas com e sem deficiência. Roberta prefere utilizar o termo "dança para corpos diversos" como tradução.
– Nosso país tem na ideia de inclusão achar que as pessoas com deficiência não podem fazer nada. A Carla convida pessoas com ou sem experiência em dança, com ou sem deficiência, monta os espetáculos e a pessoa vai ser cobrada para dar resultado como ela pode, e não ser vista como diferente. Muitas pessoas ainda vão assistir o deficiente para ver o "coitadinho". E não é isso que a gente quer mostrar – explica Roberta.
A estreia da parceria foi com a montagem Entradas, Saídas e Labirintos, em 2012. No ano seguinte seguiu com o Gato Malhado e Andorinha Sinhá, que teve 10 apresentações em Porto Alegre, onde Carla atualmente é professora na UFRGS. Em 2015, a dupla voltou a atuar junta no espetáculo Diversos Corpos Dançantes.
– A Roberta se destaca pela paixão pela arte. É raro uma pessoa que começa a dançar já adulta investir na carreira como ela faz, primeiro como bailarina, depois professora e também como produtora. Também é incrível como ela tem aproximado outras pessoas com deficiência do mundo da dança, mostrando que essas barreiras podem ser derrubadas – comenta Carla.
Desafiada a promover seu próprios espetáculos, Roberta ajudou a produzir Que Passo (2016), que teve direção de Uelinton Canedo. Antes disso, concluiu a graduação em Dança na UCS, fez pós-graduação em Neuropsicopedagogia com ênfase na educação inclusiva e passou a ministrar workshops e oficinas, sozinha ou em parceria com instituições que viram no seu trabalho uma ponte.
– Nesses últimos oito anos, a pessoa que nunca tinha dançado já tirou todo o atraso. Foram muitos convites e gratas surpresas que mostram que o esforço deu resultado – comemora.
Espaço para ser e desenvolver
Idealizado por Roberta, desde 2015 funciona em sua casa o Espaço Multicultural Ser, um coletivo artístico onde todos os corpos experimentam as mais diversas manifestações culturais. Além de realizar sonhos daqueles que para os olhares mais limitados não poderiam se envolver com dança, música ou esporte, o Ser tamém desafia educadores dispostos a se capacitar para a inclusão, sob a premissa de nenhum corpo ser excluído. Não inclui só deficientes, mas também idosos, obesos e qualquer outro que não se enquadre no padrão atlético.
Em menos de dois anos, os cursos, oficinas, palestras e capacitações do Ser se multiplicaram a ponto de ser impossível elencar todos: há aulas de violão, cavaquinho, flauta doce, percussão, teatro, dança do ventre, dança flamenca, ballet, caratê, ginástica rítmica, ginástica acrobática, zumba, reiki, terapia holística, entre outras.
– São profissionais que antes eu procurava para aprender e agora eles me procuram para que eles possam se capacitar. Quando eles encontram dificuldades, eu ajudo com a minha própria experiência no convívio com pessoas deficientes. Não gostaria de ter de rotular que são atividades adaptadas, inclusivas ou para corpos diversos, mas se não for assim as pessoas não vêm, acham que não é para elas – destaca Roberta.
Professora de ginástica, Anelise Link, 24, foi convidada a ensinar no Espaço Ser após coreografar um espetáculo de Roberta. Sua turma conta com uma criança e um adulto cegos e um casal de idosos.
– A gente trabalha com as potencialidades das pessoas, e não das dificuldades, tentando evoluir naquilo que elas têm de melhor. Eu vim da ginástica competitiva e trabalhar com a Roberta foi um desafio bem grande. O espaço proporciona a nós encontrar pessoas de todos os tipos, com diferentes histórias e que se juntam para fazer coisas legais e divertidas –
Saiba mais
O Espaço Ser está localizado na Rua Aldo Locatelli, 1157, bairro Petrópolis. Se quiser saber mais, o telefone é (54) 9959.7467.
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