Pela janela, enquanto escrevo, no parapeito do prédio à minha frente, dois pombos se enlaçam, namoram. Parecem querer me mostrar que, mesmo em meio aos tristes tempos em que vivemos, a beleza existe e resiste. Ao meu lado, o vento brinca com as folhas orvalhadas do Ypê sem flor. Lembro-me agora que esse ano ele quase não floriu. E, mergulhando no profundo dos dias, constato que neste ano quase nada pôde florescer. Um ano de sonhos e realidades interrompidas.
Rememoro o meu primeiro dia de 2020. O novo se arrebentava em fogos de artifício, enquanto meu mundo ruía na sala de estar. Muitas das vezes o recomeçar vem junto com a dor. Encerrar ciclos é doloroso para todos nós. O bom é que sabemos que dor passa, primeiro se vai a agudez da pele sendo dilacerada, logo o incômodo da cicatriz, e, quando não, é só mais uma marca. E o que são marcas, se não nossa história sendo contada?
Momentos de dor são caminhos bifurcados, onde a escolha de qual estrada seguir é obrigatória. Sempre podemos escolher o que será de nós depois do ocorrido ou apesar dele. Há, depois de sentir o incômodo da complexidade de viver, a possibilidade de nos reinventarmos, entendermos o que passou e ir adiante. Caminhar rumo ao que gostaríamos de ser, sonhar novos sonhos ou botar em prática aqueles que ficaram guardados à espera da hora certa. Sonhar é o que nos faz permanecer acordados, acredito.
Tem algo lindo e luminoso que resplandece daqueles que ousam sonhar, que buscam em expedição diária encontrar-se consigo numa melhor projeção. Há algo de pulsantemente inspirador em quem representa seu próprio desejo. Tem-se a impressão que essas pessoas fazem, de fato, jus ao sopro de vida concedido a elas pelo universo.
No correr dos meus anos, conheci gente que sonhava de forma profissional, gente sonhadora na prática. Guardo em minha alma uma galeria com seus rostos. Quando, e não é raro, o mundo se mostra duro, violento e triste, miro seus olhos dentro de mim. E, quando me vejo no chão, prostrada, sem forças pra levantar, primeiro me permito sentir cada fibra do meu corpo a reclamar, depois me volto aos meus tótens inspiradores, eles se tornam mãos que me ajudam a me reerguer. Em dado momento, que pode demorar ou não, estou de pé.
Essas pessoas, geralmente, não são famosas, ditas importantes. São gente comum, como você e eu, que andam por aí a lutar por uma vida melhor, individual e coletivamente. Gente que acredita no futuro e na beleza que mora dentro de cada um de nós. Gente que persevera, chega até a esmorecer, mas não se entrega. É assim que eu quero ser quando crescer.
Falo sobre isso agora pois noto que esses dias estranhos têm nos afetado. Estamos frágeis, com razão, tanto horror cotidiano nos abala. Porém, trago uma boa nova: o mundo não vai acabar hoje, nem amanhã, possivelmente a gente acabe e ele não. Podemos, sim, sonhar outra vez e de novo. Dá tempo!
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