Quero falar do Egito dos dias de hoje. Primeiro, porém, deixe-me mencionar uma breve notícia da qual você talvez não tenha ficado sabendo.
Recentemente, o primeiro-ministro indiano indicou Syed Asif Ibrahim como novo diretor da Secretaria de Inteligência da Índia, a agência de inteligência interna do país. Ibrahim é muçulmano. A Índia é um país predominantemente hindu, mas também é o terceiro maior país muçulmano do mundo. A maior ameaça à segurança da Índia é hoje personificada pelos extremistas muçulmanos violentos. Para a Índia, a nomeação de um muçulmano como chefe do serviço de inteligência do país é um grande acontecimento. Mas a medida também faz parte de uma evolução que visa ao fortalecimento das minorias locais. Atualmente, o primeiro-ministro da Índia e seu chefe do Exército são siques, enquanto que o ministro das Relações Exteriores e o presidente do Supremo Tribunal são muçulmanos. Seria como se o Egito nomeasse um cristão copta para chefiar o seu Exército.
"Que absurdo", talvez você diga.
Bem, sim, pode ser que isso seja absurdo hoje em dia. Porém, se isso ainda for absurdo daqui a uma ou duas décadas, saberemos então que a democracia não deu certo no Egito. Saberemos que o Egito seguiu o caminho do Paquistão, não da Índia. Isto é, em vez de se tornar um país democrático onde os cidadãos podem desenvolver todo o seu potencial, o país terá se transformado em uma nação muçulmana onde os militares e a Irmandade Muçulmana se beneficiaram mutuamente para que ambos pudessem permanecer no poder indefinidamente e "o povo" fosse novamente um espectador. Fique o Egito mais parecido com o Paquistão ou com a Índia, isso vai impactar o futuro da democracia em todo o mundo árabe de qualquer maneira.
Claro, a Índia ainda tem problemas de governança e os muçulmanos do país ainda enfrentam discriminação. No entanto, "a democracia tem valor", argumenta Tufail Ahmad, muçulmano indiano que dirige o Projeto de Estudos do Sul da Ásia no Instituto de Pesquisa sobre a Mídia do Oriente Médio, pois, segundo ele: - É a democracia na Índia que vem gradualmente derrubando, ao longo de seis décadas, barreiras primordiais (como as de casta, de tribo e de religião) e, ao fazê-lo, preparou o terreno para que todos os diferentes setores da sociedade indiana avancem por meio de seus próprios méritos, que é exatamente o que Ibrahim fez.
Além disso, as seis décadas de tirania no Egito deixaram como herança um país profundamente fragmentado, repleto de teorias de conspirações, no qual grandes segmentos da sociedade não se conhecem ou não confiam uns nos outros. Atualmente, o Egito como um todo precisaria tirar férias para refletir sobre a seguinte questão: como é que a Índia, outra ex-colônia britânica, conseguiu ser do jeito que é (cultura hindu à parte)?
A primeira resposta diz respeito ao tempo. A Índia viveu por décadas uma democracia funcional e, antes da independência, o país também batalhou para conquistar a democracia. A democracia tem menos de dois anos no Egito. A arena política do Egito estava congelada e monopolizada há décadas - as mesmas décadas durante as quais líderes políticos que vão de Mahatma Gandhi a Jawaharlal Nehru e Manmohan Singh "estavam construindo um sistema excepcionalmente diversificado, cheio de discórdias, mas impressionantemente flexível e receptivo", observa Larry Diamond, especialista em democracia da Universidade de Stanford e autor de "The Spirit of Democracy: The Struggle to Build Free Societies Throughout the World" ("O espírito da democracia: a luta pela construção de sociedades livres em todo o mundo", em tradução literal).
Além disso, ao derrubar o seu senhor colonial, o partido político dominante da Índia foi "provavelmente o mais multiétnico, inclusivo e democrático partido político a lutar pela independência entre as colônias do século XX", disse Diamond. Enquanto isso, o partido que dominava o cenário político quando o Egito conseguiu derrubar a tirania de Hosni Mubarak, a Irmandade Muçulmana, era "um partido exclusivista em termos religiosos, com raízes profundamente autoritárias, que só recentemente vem tomando uma posição mais aberta e pluralista".
Além do mais, acrescenta Diamond, comparemos as filosofias e os herdeiros políticos de Mahatma Gandhi e de Sayyid Qutb, a luz norteadora da Irmandade Muçulmana. "Nehru não era santo, mas procurou preservar o espírito de tolerância e consenso, além de respeitar as regras", observa Diamond. Ele também valorizava a educação. Por outro lado, acrescentou Diamond, "os líderes linha-dura da Irmandade Muçulmana, que têm comandado o Egito desde que o país começou a se encaminhar para as eleições, afugentaram os moderados dentro do seu partido, tomaram o poder no Estado de emergência, espancaram seus rivais nas ruas e, agora, estão tentando empurrar uma constituição não respaldada por um consenso pela goela abaixo de um grande segmento da sociedade egípcia, que se sente excluído e ofendido".
Há também os militares. Diferentemente do que ocorreu no Paquistão, os líderes pós-independência da Índia separaram as forças armadas da política. Infelizmente, no Egito, após o golpe de 1952, Gamal Abdel Nasser trouxe os militares para a política, e todos os seus sucessores, até Mubarak, os mantiveram no mesmo lugar e foram apoiados por eles e seus serviços de inteligência. Após a queda de Mubarak e depois de os novos líderes da Irmandade terem forçado o exército a voltar para os quartéis, os generais egípcios sentiram claramente que precisavam firmar um acordo para proteger a enorme teia de interesses econômicos que haviam tecido. - A profunda cumplicidade que tinham com a ordem anterior levou os militares a se comprometerem com a nova ordem - disse Diamond. - Agora eles não conseguem mais agir como uma influência restritiva.
Sim, a democracia tem valor. Mas a Irmandade Muçulmana precisa compreender que a democracia significa muito mais do que apenas vencer uma eleição. Ela tem a ver com alimentar uma cultura com formas de inclusão e diálogo pacífico, nas quais se obtém o respeito pelos líderes ao se surpreender os adversários com acordos, não ordens. O economista indiano Amartya Sen, vencedor do Prêmio Nobel, vem argumentando há tempos que foi a história da civilização da Índia, baseada no diálogo e na argumentação, que levou o país a adotar as instituições formais da democracia. Mais do que qualquer outra coisa, o Egito agora precisa desenvolver esse tipo de cultura de diálogo, de discussão pacífica e respeitosa - que foi totalmente sufocada sob Mubarak -, em vez de práticas de acusação, boicote, disseminação de conspirações e de aguardar que os Estados Unidos denunciem um lado ou outro - o que têm caracterizado em grande parte o cenário político pós-revolucionário. As eleições que não têm uma cultura assim são como um computador sem softwares: simplesmente não funcionam.
The New York Times
Egito: a próxima Índia ou o próximo Paquistão?
Caminho semelhante a qualquer um dos dois países deverá impactar no futuro da democracia em todo o mundo árabe
GZH faz parte do The Trust Project