O mundo da mídia americana foi sacudido nos últimos dias pela revelação de que o âncora da NBC Brian Williams havia mentido sobre a experiência de estar a bordo de um helicóptero Chinook sob fogo no Iraque, em 2003. Numa indústria que cada vez mais se interroga sobre sua condição na era digital, não pode haver nada mais tóxico do que uma mentira deliberada de um profissional de primeiro time a fim de impressionar o público.
Instantaneamente, as redes sociais foram inundadas por comparações com outra caso famoso, o de Jayson Blair, estrela ascendente na redação do jornal The New York Times na mesma época em que Williams escapava ileso da artilharia iraquiana imaginária. O julgamento mais agudo, porém, apareceu nas páginas do mesmo Times na segunda-feira: "Queremos que nossos âncoras estejam em toda parte, sejam impossivelmente famosos, viajados, engraçados, pés no chão e, acima de tudo, honestos. Essa é uma job description que ninguém pode superar". Seu autor era David Carr, veterano repórter e colunista de mídia do jornal que morreu na quinta-feira.
Carr nunca foi âncora, muito menos estrela da mídia. Sua voz inconfundível - baixa e sincopada, com forte sotaque nova-iorquino - não faria boa figura numa escalada de telejornal, e sua estampa, algo como o ator William Sanderson, o J.F. Sebastian de Blade Runner, usando os óculos do comediante George Burns, tampouco impressionava. Tudo mudava quando lançava mão de seu talento supremo, o de transformar apuração minuciosa, cultura enciclopédica na qual se misturavam erudição e referências pop, humor elegante e uma sensibilidade a toda prova para o espírito do tempo naquilo que seus leitores esperavam a cada semana: textos definitivos.
Por trás de todo grande homem, há uma grande história, e Carr não era exceção. Por mais de uma década, ele afundou nas drogas: era viciado em cocaína e crack, e sua mulher traficava entorpecentes. Nos insights de bom senso que experimentava entre uma e outra expedição em busca do pó e da pedra, ele desejava que Deus cuidasse das filhas gêmeas, ainda crianças. Carr conseguiu nadar para fora do desespero por meio de um programa de recuperação. Seu livro de memórias, The Night of the Gun (A Noite da Arma, inédito no Brasil), é a crônica dessa jornada sombria.
Carr ingressou no The New York Times em 2002, um ano antes do caso Jayson Blair, e tornou-se um dos venerandos nomes da redação. Seu faro levou-o a prestar atenção aos novos fenômenos do planeta midiático na década passada: Google, YouTube e, especialmente, as redes sociais. Foi um dos maiores entusiastas do uso dessas e de outras ferramentas inovadoras pelo jornalismo. Sua trajetória foi coroada com a coluna The Media Equation, publicada às segundas-feiras. Horas antes de morrer, num colapso em plena redação do Times, mediou um debate com Laura Poitras, diretora do documentário CitizenFour, indicado ao Oscar, e Glenn Greenwald, premiado repórter do escândalo WikiLeaks.