
É característica de Santa Maria: ser uma cidade com fluxo muito grande de jovens. A maioria se muda de mala e cuia para a cidade para estudar. E à rotina de estudos são incorporadas as festas com colegas e amigos.
Para se ter uma ideia, em 2010 (data do último censo demográfico), cerca de 27% da população de Santa Maria estava na faixa etária entre 15 e 29 anos _ quase 70 mil dos 261 mil habitantes da cidade à época, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Se considerarmos o mesmo índice para a população estimada pelo IBGE para 2014 (274,8 mil habitantes), o total estimado de adolescentes e jovens atualmente seria de 74 mil pessoas.
Ainda assim, o dado representa apenas os moradores, não considera, por exemplo, os estudantes que residem em cidades vizinhas e que vêm e vão todos os dias para frequentar escolas, cursinhos e universidades (temos sete). Ou seja, o número é ainda maior. São históricas e naturais a ocupação dos espaços públicos e a badalação noturna no município _ em bares e boates _ por estes jovens.
Mas, a tragédia na Kiss _ um incêndio causado pelo uso de um artefato pirotécnico durante um show _ trouxe à tona uma preocupação com a segurança nos estabelecimentos, principalmente nas boates. Esse sentimento de insegurança não existia antes, nem para os empresários, nem para os frequentadores, nem para os pais, nem para os órgãos responsáveis.
Se, há mais de dois anos, perguntássemos aos pais qual era a preocupação que sentiam ao ver os filhos saírem de casa para uma festa, à noite, em Santa Maria, eles com certeza diriam: a violência. Depois do incêndio na Kiss, de um modo geral, a preocupação é outra: será que meu filho está seguro nos ambientes que ele frequenta?
Para o empresário santa-mariense Adherbal Ferreira, antes da tragédia na casa noturna, o risco estava todo nas ruas. Por isso, no dia do incêndio, ele se preocupou e fez questão de levar a caçula, Jennifer, 22 anos, e as amigas até a frente da Kiss. Foi lá que ele viu a filha viva pela última vez.
_ Geralmente, nós nos preocupávamos com nossos filhos em relação ao trânsito, à violência nas ruas. Jamais imaginávamos que, dentro dos estabelecimentos, onde achávamos que eram protegidos, pudesse acontecer algo dessa natureza. A partir do que houve naquela noite, nossa visão mudou. Em qualquer lugar, pode ocorrer uma tragédia _ diz Aderbhal que, depois da morte da filha no incêndio, tornou-se o presidente da Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
Pais preocupados, filhos tranquilos

Thais Bondarenko Padilha, 54 anos, entende bem o que os pais das vítimas da tragédia sentem. A oficial escrevente de Justiça foi, muitas vezes, a motorista da filha Isadora, 20, e dos amigos dela nas saídas noturnas. A jovem esteve na Kiss na noite anterior ao incêndio, em uma festa da turma de Comunicação Social da UFSM, da qual Isadora faz parte _ ela é formanda de Publicidade e Propaganda. A estudante perdeu a amiga Mariana do Canto, colega de dança de muitos anos.
_ Tanto eu quanto meu marido fomos universitários da Federal. Éramos acostumados a sair em Santa Maria e nunca nos preocupamos com incêndios nos locais. Quando a Isadora começou a sair, também não tínhamos essa preocupação. Eu mesma a levava nos locais e até pensava na estrutura, mas nunca tomei uma iniciativa de fazer algo para que aquilo fosse diferente. Hoje, não digo que sou mais preocupada, mas me cobro e observo mais. Quando a levo para festas hoje, eu penso: será que este lugar está sendo fiscalizado? _ diz Thais.
_ Não tínhamos essa preocupação antes (da Kiss) e também não temos agora. Dificilmente, olhamos se o ambiente tem itens de prevenção. Não sei se as pessoas estão preocupadas. Para ser sincera, não tenho essa preocupação _ admite Isadora.
Frequentadores da noite na cidade confirmam a sensação de Isadora. A preocupação inicial, motivada pela tragédia e pelo susto de ver estabelecimentos fechando devido à falta de segurança, acabou diminuindo.
Há menos boates
Até janeiro de 2013, Santa Maria, como a maioria do outros lugares, era uma cidade de muitas casas noturnas. A badalação começava tarde da noite ou já na madrugada, e a superlotação era sinônimo de "festa boa". Após o incêndio na Kiss, primeiro em função do decreto de 30 dias de luto, depois, por causa da rigidez na fiscalização, muitas boates fecharam ou de forma definitiva ou provisoriamente para adequações. Muitas reabriram, outras não, e algumas nem saíram do projeto.
Dois anos depois, a noite da cidade não é mais a mesma. Talvez nunca volte a ser. Entre as consequências, estão as festas e reuniões frequentes nas casas dos pais ou nos apartamentos da gurizada, antes menos comuns. A prática acabou diminuindo a ansiedade da oficial escrevente de justiça Thais Bondarenko, 54 anos, em relação à segurança da filha Isadora, 20.
Os efeitos ocorreram também dentro das boates. De forma geral, os ambientes que conseguiram atender às exigências da nova legislação contra incêndios ficaram mais seguros e, agora, têm público contado, um a um. O maior controle interno resultou em aglomerações no lado de fora e reclamações de todas as partes.
_ Existem poucos lugares para ir. As filas estão enormes. Temos que chegar às 20h para conseguir entrar em uma festa _ reclama Isadora.
O grande número de pessoas nas festas não era uma constante só na Kiss. Também acontecia em bares, clubes e em outras boates. Agora, com menos estabelecimentos abertos, ficou muito mais difícil suprir a demanda do público.
_ Noto que surgiram mais pontos de vendas de bebida nos bairros que acabam virando ponto de encontro de jovens. São locais inadequados, que geram barulho, sujeira e interrompem o trânsito _ observa o arquiteto Nabor Ribeiro, que tem filhos jovens.
Para os donos de casas noturnas, houve uma caça às bruxas na cidade. Nilvo Dornelles, dono da Ballare, decidiu vender a boate. Ele diz que não conseguiu recuperar o público, depois de ficar com o estabelecimento fechado por cerca de seis meses para reformas, em 2013. Ele pretende trocar de ramo.
Uma das casas noturnas que também sofreu interdições e os efeitos das novas exigências foi o Muzeo Pub. Mas, agora, segundo a prefeitura e o proprietário, a boate está com todas as licenças em dia e vai promover, na terça-feira, uma festa em homenagem às vítimas da tragédia.
Neste contexto de maiores exigências, os pais ficam um pouco mais tranquilos enquanto os filhos se divertem.
_ Os jovens continuam saindo. Mas, parece que Santa Maria perdeu um referencial de sair à noite. Uma coisa positiva é a exigência de segurança, que aumentou em todos os eventos, inclusive nas formaturas. Hoje, vemos que o trabalho dos órgãos de fiscalização cresceu na cidade, mas acho que ainda não é o suficiente _ pondera a mãe.
Os clubes também foram afetados. As festas particulares precisam seguir as novas regras. Mas, se no aspecto de segurança contra incêndio, as exigências aumentaram e são cumpridas, a segurança privada ainda deixa a desejar.
Mesmo com a discussão sobre o preparo dos seguranças impulsionada pelo que ocorreu na Kiss _ segundo relatos de vítimas, a saída foi bloqueada por profissionais da casa noturna durante alguns minutos _, ainda hoje ocorrem tumultos que não são controlados pelas equipes contratadas pelos organizadores de festas e shows. Foram pelo menos seis ocorrências nos últimos dois anos na cidade, em clubes e boates. Essa lição, Santa Maria ainda não aprendeu.
