
Esporte para todos, não para poucos.
Ana Moser repete o mantra com a mesma insistência com que enterrava bolas na quadra adversária, quando vestia a camisa 2 da seleção brasileira de vôlei. Aos 45 anos, a medalhista de bronze na Olimpíada de Atlanta/1996 preside a associação Atletas pela Cidadania, responsável pelo manifesto Atletas pelo Brasil, lançado em julho.
No documento, um pedido: Ana e seus parceiros querem que a herança da Copa de 2014 e dos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016, seja a transformação do país através do esporte. Mais do que trazer novos estádios e instalações, a ideia é de que os eventos impulsionem políticas que tirem o brasileiro da frente da televisão e o leve para as ruas, quadras e campos para praticar atividades físicas.
As primeiras vitórias da caminhada vieram nos dias 10 e 17 de setembro, quando a Câmara e o Senado, respectivamente, aprovaram a MP 620, que põe fim às intermináveis reeleições de dirigentes de entidades esportivas, entre outras determinações que visam dar transparência à gestão do esporte. Ana esteve em Brasília ao lado de nomes de peso como Hortência, Leila e Raí para ajudar a convencer os parlamentares da importância das medidas.
Em entrevista a ZH, ela fala sobre o nascimento da associação, traça um panorama da participação dos atletas na política e reafirma o compromisso de lutar para que os investimentos não estejam voltados, apenas, para a formação de campeões.
Zero Hora - Como se deu o início do movimento Atletas pela Cidadania?
Ana Moser - Nós começamos ali por 2007. Antes disso, a Paula, o Raí e eu criamos entidades, cada um para seu lado, até que passamos a ouvir cobranças, questionamentos de por que os atletas não se juntavam para ajudar determinadas causas, movimentos. Em um momento, o Raí resolveu tomar a responsabilidade: botar dinheiro, contratar gente para fazer estudos. Fomos entrando em um processo de políticas para a educação e a juventude. Aí entrou gente como o Gustavo Borges, o Lars Grael. Os atletas participavam, mas quem estava em atividade, muito menos. Aos poucos, foi criando corpo. Quando a gente estabeleceu a causa do esporte, unificou mais ainda os atletas.
ZH - Quando foi isso?
Ana Moser - Antes de 2009. Antes de o Rio ser escolhido para a Olimpíada, logo depois do Pan-Americano (de 2007). As pessoas nos cobravam um posicionamento com relação ao Pan, superfaturamento, prestação de contas, desempenho. Estava rolando uma possibilidade de CPI do COB e da CBF. Isso nos empurrou para tomar uma posição e definimos uma visão de esporte logo que saiu a candidatura para a Olimpíada. Aí passamos a entrar nessa questão do legado. A gente entendia que haveria um grande fortalecimento do esporte, de maneira geral, e que se não tivesse, dentro desse pacote, um pedaço estabelecido para o esporte para todos, não ia acontecer. O esporte competitivo é visível. Há recursos para estádios e não ia faltar investimento para estruturação de equipes olímpicas, mas se não houvesse uma intenção, não só teórica, mas prática, de incentivo ao esporte para todos, não ia adiante. Começamos a bater nisso e fomos trazendo cada vez mais atletas.
ZH - Mas como funciona a participação dos atletas que estão em atividade?
Ana Moser - Para quem está em atividade, eu traço a comparação com quem está na área da cultura: a diferença é que, na cultura, quanto mais velha a pessoa fica, ganha em amadurecimento e torna-se uma melhor profissional. No esporte, a gente tem um período, que não chega a 20 anos de carreira. Você dá 100%, porque sabe que vai acabar. O atleta em atividade é um ser meio fora do mundo normal. Come, dorme e treina pensando em resultado. Mas a gente tem, por exemplo, o PAULO ANDRÉ* (zagueiro do Corinthians), que participa muito. No vôlei, o Gustavo, o Murilo. Estão em atividade e vibrando com o que vem acontecendo. São vários movimentos na área do esporte e que vão para a mesma direção. É a transparência na gestão, o bom uso dos recursos, o esporte que inclui a todos e não poucos. Você tem uma Paula, uma Hortência, uma Leila, que passam o dia no CONGRESSO nos apoiando. A gente brinca que o que está acontecendo é um swell, são várias ondas. Elas vêm, passa uma onda, a gente aproveita, mas não soluciona o problema do esporte com uma varinha de condão. É uma onda depois da outra.
ZH - Qual a força que tem a participação dos atletas, que muitas vezes são ídolos e figuras midiáticas?
Ana Moser - A imagem que os atletas têm é valiosa. O cara que nos ajudou a criar o primeiro conceito do que seria uma associação de atletas, na época o Atletas pela Cidadania, dizia que as pessoas escutam o que a gente fala. Inclusive quando a gente fala besteira. O pessoal até desculpa: "Ok, ele falou besteira, mas é tão legal, ele joga, nos emociona". Quando a gente faz o que a gente se propõe a fazer, que é dentro da quadra, passamos uma credibilidade. Um esforço e um respeito pelo país, pela bandeira, pelo uniforme. Essa imagem é que chama a atenção das pessoas, que param para ouvir. Dão crédito para o que está sendo dito. Nesse sentido, atletas se posicionando de uma maneira madura, estruturada, com argumentos, é algo poderoso. Tem um efeito muito forte. Muitos atletas juntos, falando a mesma coisa, têm um efeito considerável.
ZH - Como você compara a participação dos atletas hoje e o que era em sua época nas quadras?
Ana Moser - Eu acho que é tudo um amadurecimento, de país, de democracia. A gente tem mais mobilização e participação. Temos mais conhecimento das questões e da vida em sociedade, da legislação, como as coisas funcionam e como é um país em que as pessoas têm espaço para participar. Não esperamos mais que o governo faça as coisas. O Brasil tem muito isso também, espera o governo fazer, culpa o governo quando não tem. E na verdade é dever de todos. No texto da Constituição, os direitos sociais são dever do Estado e da sociedade. Só que a sociedade se enxerga apenas como detentora de direitos, não de deveres. Hoje a gente tem um contexto bem mais favorável do que na nossa época. Mas tinha participação. Eu não sei muito nos outros esportes, a gente não tinha tanto acesso às informações. Mas no próprio vôlei, eu lembro da Jacqueline, que quando começou a rolar mais dinheiro, veio com o conceito de direito de arena. Fez greve porque a seleção tinha patrocínio e as jogadoras não tinham direito de arena. Isso foi em 1985. Na verdade, hoje existe um volume maior de participação e um contexto onde essas questões têm muito mais interesse e importância. Antigamente, quem fazia parte e se manifestava, era o rebelde. Hoje os rebeldes estão em maior número.
ZH - Questões relacionadas ao esporte de alto rendimento tendem a envolver mais os atletas. Por que, então, a pauta do esporte como instrumento de inclusão social?
Ana Moser - O esporte para todos, como inclusão social, é uma visão de país. É um país ativo, saudável, ético. O esporte tem uma ética de meritocracia em que você é o que faz, não o que você fala, nem o que aparenta. Isso tem tudo a ver com o que nós somos. Eu fui atleta profissional por 15 anos, mas fui esportista antes e sou depois. Isso é estilo de vida, não foi só uma atuação enquanto estava em quadra. Funciona da mesma forma para os outros atletas. Hoje, a nossa estratégia, prática, é a MP 620. O texto que está lá. Por quê? Tem uma estratégia atrás disso. Queremos pautar o Legislativo e o Executivo federais. Os municipais a gente já está pautando, mas só se consegue mudar as coisas lá a partir de uma política nacional. Temos que pautar o Congresso Nacional e o Palácio no tema esporte. Assim, abrem-se as portas para estruturar. Entram questões como a luta para que todas as crianças tenham uma carga horária semanal de atividades esportivas, educação física, enfim. Garantir que as pessoas tenham acesso à atividade física para a saúde e lazer. Ter programas, praças para esporte amador. Tem muita coisa a ser estruturada. Mas se a gente pega esse todo, não chega a lugar nenhum. A gente resolveu fazer essa primeira parte e já está trabalhando as outras pautas. Essa estruturação precisa ser feita para garantir isso tudo. Temos que fazer essa pauta rolar e ganhar em importância. Vamos propor a criação de um comitê interministerial para estabelecer políticas de esporte. O esporte para a criança, que está ligado à escola, o esporte para adultos, que tem a ver com saúde. Não é só a legislação dos dirigentes esportivos. É o esporte como um todo. Essa pauta, que hoje não é tão visível, está presente nos bastidores e vai acontecer em um momento oportuno.
ZH - Uma das causas da Atletas pelo Brasil diz respeito ao legado dos grandes eventos. Qual a maior preocupação nesse sentido?
Ana Moser - Sobre a organização dos Jogos, já tem muita gente falando. Quando a gente fala em legado, é na estrutura do esporte para que ele aconteça do norte ao sul do país e para todos. Para os atletas, atletas amadores, praticantes, iniciantes. Essa é a visão do legado. Se essas questões não estiverem no planejamento, não vão acontecer. Os eventos são uma possibilidade de a gente estruturar uma base de um sistema de esporte para todos, que tem referências internacionais. Temos analisado, por exemplo, o sistema canadense, o CANADIAN SPORTS FOR LIFE*, que eles estão implantando desde o ano passado e tem previsão de cinco anos de duração. É uma visão de uma nação inteira ativa. Teve também o que a Inglaterra fez desde 2005, antes de ser escolhida para ser sede da Olimpíada. Naquela época, já existia em andamento um programa nacional de esporte na escola, para fazer com que 100% das crianças e jovens tivessem cinco horas de atividade por semana. Eles conseguiram. O Brasil gosta de esportes, mas só vê na televisão. Não é só uma inclusão, que é uma coisa bonita de se dizer e fazer, é uma questão de fortalecer o país, fortalecer as pessoas individualmente, a economia, a identidade, ocupar espaços públicos e as ruas. A ideia não é tirar as crianças da rua, é botar as crianças de volta na rua. Se você não ocupa uma praça, uma quadra em uma periferia, o tráfico vai ocupar e fazer o serviço deles. Queremos tirar as pessoas da frente da televisão e colocar na rua para conviver. Isso é uma visão de uma nação saudável. Veja a diferença dos artistas, que foram a Brasília defender o Ecad. Foram defender uma causa para eles. Nós estamos defendendo uma visão de país através do esporte.
ZH - Como é esse processo de convencimento junto a políticos, já que o esporte de alto rendimento tende a gerar mais visibilidade?
Ana Moser - Isso faz parte do jogo. A gente tem isso, mas outros políticos têm uma visão mais de Estado e menos de gestão. Por isso que é importante ter vários atores envolvidos. Aí você cria não um projeto de alguns atletas com uma determinada gestão. Aumenta muito mais as bases. Temos falado com muitos políticos nas nossas andanças no Congresso, e a sensação é que se mira uma questão mais profunda e estruturante. Não é só falar com gente que tem visão de mandato, que acha que precisa fazer alguma coisa no seu mandato para ter outro, é conversar com gente que não teve boas experiências com esporte e convencer da importância. É uma questão de investimento e de cultura. Talvez demore um pouco, mas algumas questões emblemáticas podem ser mudadas. Como, por exemplo, um incremento da LEI DE INCENTIVO AO ESPORTE*, para ampliar o recurso. Criar também essa estrutura para construir um Plano Nacional do Esporte, assim como tem um Plano Nacional de Educação ao qual os municípios aderem e são orientados por indicadores e metas. A partir daí, recebem os recursos. A gente tem que fazer funcionar. Política é lei e orçamento. Se a gente consegue avançar nessas questões, constrói as bases para estruturar o esporte.
DESTAQUES
* Alguns ex-atletas e dirigentes de destaque atuam hoje nas casas do Legislativo brasileiro. Entre os nomes mais célebres, Romário (PSB/RJ), Danrlei (PSD/RS) e Acelino "Popó" Freitas (PRB/BA). Romário tem se destacado por sua postura crítica à administração do esporte no país, não poupando críticas à CBF.
* A MP 620, já aprovada na Câmara e Senado, limita as reeleições de dirigentes esportivos. As determinações visam impedir que exemplos como o do judô, cuja confederação foi presidida por membros da família Mamede por 31 anos, se repitam. O texto tem medidas que apontam para uma gestão mais transparente e democrática do esporte.
* Sancionada em dezembro de 2006, a Lei de Incentivo ao Esporte estimula pessoas e empresas a patrocinar e fazer doações para projetos esportivos e paradesportivos, em troca de incentivos fiscais. Mais de R$ 211 milhões foram investidos por empresas e pessoas físicas através da legislação no ano passado.
* O zagueiro do Corinthians Paulo André destaca-se não somente por sua atuação dentro de campo. Além de participar do Atletas pela Cidadania, é um dos líderes do movimento Bom Senso F. C., que pede melhorias na gestão do futebol. O jogador também é escritor (lançou o livro O Jogo da Minha Vida) e pinta quadros como hobby.
* Criado em 2005, o Canadian Sports for Life é um movimento de especialistas de diferentes áreas para melhorar a qualidade do esporte e da prática de atividades físicas no Canadá. Tem o objetivo de conectar esporte, educação, recreação e saúde, com medidas que envolvem programas das comunidades, das províncias e do país.