Fábio Prikladnicki
Certa vez, folheando um livro de arte, o diretor de teatro italiano Romeo Castellucci deparou com um rosto com o qual havia travado contato quando era estudante de artes visuais em Bolonha.
Era uma imagem de Jesus pintada pelo renascentista Antonello da Messina provavelmente em 1465. Sentiu como se o retrato olhasse para ele.
> Entrevista: "A polêmica tem ocorrido apenas com aqueles que não viram a peça", diz Romeo Castellucci
Essa experiência fundadora levou à criação da peça Sobre o Conceito da Face no Filho de Deus, da Socìetas Raffaello Sanzio, inovadora companhia italiana da qual Castellucci foi um dos fundadores e grande atração do 20º Porto Alegre Em Cena. As sessões serão desta quinta-feira (19/9) a sábado (21/9), às 21h, no Theatro São Pedro.
O cenário conta com uma grande reprodução da obra renascentista. No auge do espetáculo, um grupo de 10 crianças entre oito e 12 anos, recrutadas em Porto Alegre, arremessa granadas de alumínio contra ela.
A peça foi alvo de protestos religiosos. Um grupo interrompeu uma apresentação em Paris, em 2011, com cartazes pedindo o fim da cristianofobia. Os manifestantes tiveram que ser retirados pela polícia para que a sessão pudesse recomeçar. Qual o motivo de tanta polêmica?
- Você tem que perguntar para eles - responde o ator Sergio Scarlatella, em entrevista a Zero Hora, ao lado do veterano Gianni Plazzi, com quem contracena.
Ambos negam, em uníssono, que haja conteúdo antirreligioso. Na peça, Scarlatella interpreta um filho que cuida do pai idoso (Plazzi) que sofre de incontinência. Este aparece em cena vestindo apenas uma fralda geriátrica por onde escorrem fezes. E a companhia não poupa o público dessa imagem.
- Procurar uma relação direta entre os personagens e o retrato de Jesus que está no cenário não é um bom caminho para interpretar a peça - avisa Plazzi.
Sim, este é um daqueles espetáculos que você tem que completar com a imaginação. Não há exatamente uma história, mas uma sequência de cenas. Funciona em dois planos: um deles mostra a relação entre o pai e o filho; outro remete a um registro onírico, no qual se passam diversos eventos sem conexão aparente. Uma frase de Castellucci no material de divulgação dá uma pista: "Quero encontrar Jesus em Sua mais extrema ausência".
Com uma trajetória de 32 anos, a Raffaello Sanzio é uma das mais destacadas companhias do teatro pós-dramático - embora os atores não se identifiquem com esta expressão. Trata-se, em resumo, de um teatro que foge da dramaturgia tradicional, buscando novas formas de expressão cênica.
Sobre o Conceito da Face... é a terceira participação do grupo no festival. Em 1999, eles mostraram Orestea (Una Commedia Organica?), versão da tragédia de Ésquilo interpretada por um elenco que contava com mulheres muito gordas, homens muito magros e pessoas com deficiência. Havia também animais em cena. Em 2006, a companhia narrou a história do Pequeno Polegar com o público confortavelmente deitado em camas. Os espectadores de Buchettino eram recebidos com cheiro de mato e de chá.