Fábio Prikladnicki
Autor de peças contundentes, marcadas pela mescla de gêneros teatrais e pela paródia, Julio Zanotta se considera um iconoclasta. Aos 63 anos, completados nesse domingo, o dramaturgo, nascido em Pelotas, será homenageado na Semana Julio Zanotta, promovida pela Coordenação de Artes Cênicas da prefeitura de Porto Alegre.
A partir desta segunda, serão nove noites com leituras dramáticas de peças inéditas, dirigidas por encenadores de destaque da cena teatral gaúcha de diferentes gerações (confira a programação aqui). As atividades ocorrem diariamente na sala Álvaro Moreyra do Centro Municipal de Cultura (Erico Verissimo, 307), em Porto Alegre, sempre às 20h, com entrada franca, até 27 de agosto.
> Leia, também, a segunda e a terceira parte da entrevista
> Confira a programação da semana Julio Zanotta
Zero Hora - O senhor estava dizendo que levava uma vida tranquila e que a ideia da Semana Julio Zanotta deu uma movimentada.
Julio Zanotta - Desde 2005, tenho me dedicado só a escrever. Era livreiro e larguei tudo para escrever porque saiu minha anistia política. Recebi uma pensão vitalícia, provocada pela peça de teatro As Cinzas do General, que foi violentamente reprimida em 1980, 81. Tive que sair do país e passei dois anos fora. Na época, vieram para cima de mim a polícia federal e todos os órgãos de repressão da época porque a peça pedia a liberação da maconha. Agora, essa questão da liberação da maconha está na moda.
ZH - Como era a peça?
Zanotta - Entrou em cartaz no início da abertura, no governo Figueiredo. Eu mesmo dirigi. A peça foi proibida e depois liberada com cortes. Mas desprezamos a censura e apresentamos sem cortes. Era uma peça meio anárquica, política e extremamente ofensiva à honra das forças armadas.
ZH - Por quê?
Zanotta - Tudo girava em torno das cinzas de um general, um ditador que morria. Quem tivesse essas cinzas, deteria o poder outra vez. No final, aparecia uma homenagem ao general em praça pública e subia um esqueleto com quepe. Esse esqueleto foi feito pelo cenógrafo com imitação de ossos humanos e ossos de vaca. Naquela época, tínhamos muito ódio da ditadura. Na primeira aberturinha que deu, descarregamos toda a nossa rebeldia.
ZH - Então, vocês desprezaram a censura e apresentaram na íntegra.
Zanotta - A censura ia ao ensaio. Eram três censores. Um olhava, outro acompanhava o texto e outro ouvia a trilha sonora. Mostramos para eles o texto com cortes. Os figurinos eram outros. Lembro que, quando terminou o ensaio, o censor se virou para mim e perguntou: "Mas é isso mesmo que vocês vão fazer?" (risos).
ZH - E como foi a temporada?
Zanotta - Ficou em cartaz umas três semanas. Aconteceu uma provocação na estreia. Um ator foi espancado. Depois, a minha casa foi invadida. Quebraram tudo, e fui parar no pronto socorro com o nariz quebrado, os olhos roxos, todo engessado. Bateram na minha porta às três da manhã. Disseram: "O dramaturgo Zanotta mora aqui?" Aí já vi que tinha algo diferente. Nisso, a porta veio abaixo. Entraram três pessoas e mais um informante que estava dizendo onde eu morava. Eu o conhecia. Fui salvo porque os vizinhos acharam que era um assalto e chamaram a Brigada Militar. Quebraram toda a sala e me arrastaram para o corredor. Quando estavam batendo minha cabeça nas lajotas do piso, vi as botas dos brigadianos subindo, e aí desmaiei.
ZH - Onde o senhor morava?
Zanotta - No terceiro andar de um edifício na (rua) André da Rocha. Naquela época, os edifícios não tinham tantas grades quanto hoje (risos). Mas esses caras entravam em qualquer lugar. A partir daí, fiquei intensamente vigiado. Passei três dias fugindo dentro de um carro. Até que me apresentei na polícia federal, onde tinha sido aberto um inquérito por indução ao uso de tóxicos por causa da peça. O inquérito correu normal, fui absolvido, mas minha vida ficou impossível. Passei a ser intensamente perseguido. Certa vez, fui na Editora Tchê! falar com o (jornalista e escritor) Airton Ortiz, que tinha o jornal Tchê!, com o qual ele pediu que eu colaborasse. Saí de lá, e ele recebeu a visita de duas pessoas, intimidando-o, dizendo que não tivesse contato comigo.
ZH - Daí o senhor saiu de Porto Alegre?
Zanotta - Montei outra peça, O Café, do Mário de Andrade. É uma coisa que pouca gente sabe, mas no elenco tinha uma pessoa infiltrada. Trabalhei com jovens. E a situação ficou impossível.
ZH - Isso já era na abertura política...
Zanotta - Sim. Era 1981. Eu e minha companheira fugimos. Atravessamos o Brasil e saímos pelo Acre com passaporte falso. Foi muito engraçado porque, quando conseguimos chegar em Lima, no Peru, estava todo mundo voltando para o Brasil, e nós estávamos saindo (risos). Aí fui até o México. Passei dois anos de um lado para outro. Voltei muito paranoico e me refugiei no sul da Bahia, no meio da mata, onde hoje fica Trancoso. Morei um tempo lá e depois voltei para Porto Alegre.
ZH - Morou em quais países?
Zanotta - Fiquei seis meses no Peru. Fui andando de cidade em cidade. Fazíamos teatro, reportagem, o que dava. Já tinha estado no Exterior por problemas políticos em 1973. Tinha alguns contatos na América Latina, e isso me ajudou bastante. Tudo graças a uma rede de solidariedade que apoiava os refugiados políticos. Ia de um lugar para outro com essa rede.
ZH - Passou quanto tempo fora?
Zanotta - No total, seis anos fora do país. Passei quatro anos na primeira vez , em 1973, quando estava envolvido com política estudantil, e dois anos depois, por causa de As Cinzas do General. No final dos anos 1990, entrei com pedido de anistia e um pedido de indenização porque minha carreira tinha sido truncada. E felizmente eu consegui.
ZH - Então agora o senhor tem tido tranquilidade para escrever as peças.
Zanotta - Isso. Ironicamente, posso dizer que vivo de direitos autorais. Vacilei muito antes de entrar com esse processo, mas foi interessante. Um advogado de Curitiba me convenceu a entrar, dizendo que eu tinha esse direito. Quando veio a anistia, me senti gratificado.
ZH - Com o que o senhor trabalhava até 2005?
Zanotta - Eu tinha livraria. Me envolvi também na questão cultural do livro. Fui presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro, dirigi a Feira do Livro (de Porto Alegre) por quatro anos. E me retirei de Porto Alegre, sempre com esse impulso de querer escrever. Mas minha vida era muito agitada, tinha que batalhar muito. Saí de Porto Alegre em 1999, fui morar em Gramado, depois em Canela e em Curitiba. Em Curitiba, saiu minha anistia política. Na mesma hora, vendi a livraria e passei a me dedicar apenas escrever. Então, saí do marasmo para uma agitação com esse evento da Coordenação de Artes Cênicas (a Semana Julio Zanotta).
ZH - Fale sobre isso.
Zanotta - Tenho muitos textos que fui acumulando durantes esses anos. Tanto que, no evento, estão apresentando novos textos. São sete peças longas e mais 10 curtas, todas inéditas. Algumas eu venho escrevendo há muito tempo. A Ninfa Dragão eu escrevo desde 1980, tenho oito versões. Agora é a versão definitiva. O Homem Jaguar Pássaro Serpente escrevi agora, mas baseado nas pesquisas que eu fiz durante essas viagens pela América Latina. É uma peça que tem diálogos em quéchua (língua falada por povos andinos). Tem uma pesquisa sobre o Peru profundo, os mitos profundos andinos, essa questão toda dos rituais xamânicos, das raízes das culturas autóctones dos Andes. Louco é uma versão de um livro de contos. Tem alguns textos que são bem recentes. Amor no Facebook é uma história verídica de uma relação amorosa que ficou registrada no Facebook.
ZH - Aconteceu com o senhor?
Zanotta - Comigo e com outra pessoa. Tinha mais de duas mil mensagens trocadas. Era uma pessoa casada, com filhos, que queria uma alternativa (de relacionamento), mas sem desmanchar o casamento. E nós tentamos essa utopia. Conversávamos juntos, eu, ela e o marido, para resolver as questões (risos). Pensei: "Isso aqui dá uma peca de teatro". Mas ela sempre exigiu anonimato, queria preservar os filhos. Eu disse: "Ok, ficas anônima". O texto original tem 299 páginas. Fiz uma seleção de 40 páginas.
ZH - Vocês se encontravam pessoalmente?
Zanotta - Sim, claro. Nos encontrávamos pessoalmente e nos falávamos pelo Face. Algumas vezes, conversamos pessoalmente os três.
ZH - O marido dela não se importava?
Zanotta - Ele participava dessa utopia, achava que tinha que ter uma possibilidade que mantivesse o vínculo entre os dois e que permitisse a cada um ser feliz sexual e afetivamente.
ZH - Um relacionamento aberto.
Zanotta - Seria um relacionamento aberto ou uma relação poliamorosa, como também se chama.
ZH - Comente as outras peças.
Zanotta - Outra que terminei neste ano foi Luiza Felpuda, que fiz por encomenda para o (ator) João Carlos Castanha. É a história do assassinato de um homossexual de Porto Alegre, famoso, que tinha uma casa de encontros na (rua) Santo Antônio, nos ano 1960 e 70. Era frequentada pela elite e pelo povo da noite. A Luiza Felpuda era parente do João Batista Luzardo, caudilho que apoiou Getúlio Vargas, depois rompeu. Ele (Luiza Felpuda) foi barbaramente assassinado, castrado, empalado. Incendiaram a casa de encontros. Isso foi em 1980. A peça é baseada na história real. Tentei pesquisar, até com apoio do Instituto Histórico e Geográfico (do Rio Grande do Sul), mas não encontrei o processo criminal. Despareceu. Não é conspiração, é uma questão da desorganização dos nossos arquivos policiais. A peça é um musical dramático. É uma peça muito brutal. O mundo da Luiza era violento, mas ela era cordata. Há depoimentos da vizinhança da casa de encontros segundo os quais que ela era uma pessoa amável, que não perturbava a ordem. E a elite ia lá também, a elite enrustida, dentro da armário. Vinha clientes do Uruguai e da Argentina. Foi interessante porque tive que entrar nesse mundo alternativo homossexual, entrevistar pessoas que frequentavam a casa e tentar entender como é esse universo. Esse crime sempre me marcou muito.
ZH - As peças guardam uma diversidade entre si.
Zanotta - Baudelaire é um texto mais antigo; Ulisses no País das Maravilhas também. Ulisses... adquiriu uma súbita atualidade com as manifestações de rua. O argumento é um escritor fracassado viciado em drogas que vendeu tudo de sua casa, restando uma caneta. E entra uma jovem sensitiva, uma adolescente. Na rua, há uma tremenda manifestação política contra o poder. Estão quebrando tudo, incendiando, tem bomba de gás lacrimogêneo. Eles escutam as manifestações de dentro daquele apartamento decadente. Também serão lidos 10 textos curtos eróticos. O que me deixa lisonjeado é que, no evento, serão alguns dos melhores diretores da cidade. Até fiquei espantado quando vi os nomes. Pensei: "Mas que galera" (risos). Foi um trabalho do Breno (Ketzer) Saul, da Coordenação de Artes Cênicas.
> Leia a segunda e a terceira parte da entrevista
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