Longe dos octógonos de luxo e dos combates profissionais, a falta de regras e fiscalização nos campeonatos amadores de muay thai e MMA (Mixed Martial Arts) dá sentido ao termo "vale tudo". Por mais de três meses, ZH mergulhou nos subterrâneos das lutas e foi aceita em campeonatos sem comprovar qualificação. Nos torneios, viu atletas despreparados em lutas de desnível técnico, com equipamentos precários e inclusive ambulâncias proibidas. Nos bastidores, comprovou que a explosão de popularidade das artes marciais e a multiplicação de academias formou um ambiente perigoso para fãs do esporte.
Depois de disputar três rounds de muay thai no "torneio estímulo" realizado no Centro Estadual de Treinamento Esportivo (Cete), em Porto Alegre, no dia 4 de outubro, um atleta da equipe "Ben Hur" foi declarado vencedor por pontos, mas teve de se amparar nas cordas e em pessoas para conseguir sair do ringue. Ele caminhou poucos metros até uma área de aquecimento e caiu sobre os tatames. Exausto, não se mexia, não falava, não abria os olhos.
Os socorristas foram chamados e, com um equipamento, verificaram que o lutador estava com aceleração cardíaca. Pelo menos cinco pessoas, além dos dois enfermeiros, o cercavam. Uma delas abanava com uma toalha, com a intenção de refrescar o companheiro com o vento. Passados cinco minutos, como o competidor não conseguia se mover, o socorrista trouxe a maca (primeira foto abaixo).
Quatro pessoas o agarraram pelos braços, tronco e pernas e o colocaram sobre o colchão. Ele foi levado até o interior da ambulância que estava de prontidão no evento. Ficou lá deitado por cerca de 10 minutos, depois foi liberado pelos dois socorristas, que voltaram a sentar ao lado do ringue.
Ainda cambaleante, o competidor desceu da ambulância e sentou no primeiro degrau de uma escada de um dos ginásios do Cete. O seu treinador apareceu e lhe ofereceu uma lata de Coca-Cola. O atleta tomou e, logo depois, passou a vomitar. Amparado por companheiros, foi levado para a parte externa do ginásio, deitado em um gramado (veja foto acima), sob a sombra de uma árvore. E lá ficou por uma hora, imóvel e estirado, recobrando condições de caminhar.
Logo na primeira luta no torneio estímulo na Team Nogueira, em 22 de novembro, dois jovens se enfrentaram em um combate de muay thai. "Dá nele, Neguinho. Quebra ele", incentivavam amigos que estavam ao lado do ringue. A cada golpe encaixado, vibravam gritando "heeeeyyyyy", uma espécie de "gooollll" do muay thai.
Mas Neguinho foi pego no clinch (duas mãos envolvendo e dominando a nuca do adversário, fazendo força para baixo), sofrendo em seguida quatro joelhadas certeiras no rosto. Neguinho ficou tonto, caiu e, depois de alguns instantes, a luta foi encerrada. Nocaute. Com o nariz quebrado (foto abaixo), Neguinho foi levado a uma região ao lado do ringue, com cadeiras e mesas, que serviam de posto médico. Apenas algodões foram colocados no local da fratura.
Equipamentos de proteção precários
Mais tarde, também na Team Nogueira, dois atletas combinaram, com a concordância do árbitro, de lutar muay thai sem os equipamentos de proteção: capacete, colete, caneleira e cotoveleira. Um deles foi nocauteado e sofreu um desmaio. Pessoas subiram ao ringue para, improvisadamente, abaná-lo com toalhas até que ele retomasse a consciência.
Em vez de UTIs móveis, veículos básicos (Carlos Rollsing/Agência RBS)
Nos três episódios, uma coincidência: a ambulância contratada para atender o evento não saiu do lugar. Mesmo em casos sérios, como fraturas, desmaios e acelerações cardíacas, os socorristas fizeram apenas um atendimento básico. A ambulância não saiu do local. Não foi ao hospital.
Tanto no torneio realizado no Cete quanto na Team Nogueira, diversas lutas dispensaram os equipamentos de proteção, principalmente nos combates feitos. Mesmo quando os itens são utilizados, as precariedades saltam aos olhos.
Lutadores amadores de muay thai não usaram protetor na cabeça (Mateus Bruxel/Agência RBS)
No Cete, os lutadores que usavam o capacete azul estavam prejudicados. Ele ficava frouxo nas cabeças, caindo a todo instante, deixando o crânio desprotegido. Por vezes, os árbritros interrompiam os enfrentamentos para ajustar o protetor. Ainda no Cete, pelo menos uma luta foi cancelada porque um dos atletas se recusou a subir no ringue sem o colete, que protege as costelas. O evento não dispunha do equipamento de segurança.
Falta de leis favorece as irregularidades
Não existe no Brasil uma legislação específica para estabelecer regras a serem seguidas pelos campeonatos amadores de muay thai e MMA. Da mesma forma que não há padrões legais de segurança a serem cumpridos, também inexiste um órgão responsável pela fiscalização.
Para praticantes das artes marciais, esse vácuo normativo abre brecha para que torneios sem as condições de segurança sejam realizados. São ocasiões em que podem ocorrer falhas como dispensa de equipamentos de proteção e de exames de saúde, ambulâncias impedidas de levar feridos ao hospital e desequilíbrios técnicos no casamento das lutas.
- Na falta de uma regulamentação específica na legislação brasileira, seguimos, em termos gerais, a Lei Pelé, que determina a adoção internacional das leis de cada esporte para o país. O problema é que as federações e associações são organizações civis, elas não seguem um regramento - explica o promotor Júlio Almeida, que já denunciou ao Judiciário a exposição de um menor de idade a risco de vida em academia de muay thai de Porto Alegre.
A Lei Pelé, em termos gerais, organiza o sistema esportivo brasileiro, mas não estabelece regras para as modalidades e facilita a fundação de federações, o que causou uma multiplicação de entidades de muay thai e MMA no país. Quando ocorre algum problema em campeonatos de artes marciais, como lesões graves, os advogados, promotores e juízes que tomam parte no caso precisam recorrer a itens gerais da legislação brasileira para processar, defender, acusar e julgar.
- Acabamos nos referenciando na lei penal e no código do consumidor para avaliar eventuais crimes. O código do consumidor é válido porque a partir do momento em que o atleta paga uma inscrição de campeonato, ele se torna um consumidor. Em caso de participação de menores, é adotado também o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - explica Almeida.
Saiba quais são os equipamentos de proteção usados no muay thai amador:
O que dizem os envolvidos citados na reportagem
Rafael Chiavaro, proprietário da Team Nogueira Porto Alegre
Teve os dois (tipos de lutas) - com e sem equipamento.Uma coisa é fazer um evento num fundo de quintal, agora eu faço na Team Nogueira e vou ficar dando explicação? Pô, é meio foda. (...) Eu contratei essa mesma ambulância que faz quase todos os eventos de MMA e Muay Thai por aí, foi indicada pela federação. Não sei mais o que tenho que fazer. Tem uma legislação clara de como deve ser feito o evento? Eu estou tentando fazer o que é melhor.
Cândido Machado, proprietário da Transcor, empresa que trabalhou no campeonato da zona norte
A ambulância só desloca do local com um paciente com risco de vida, porque se a ambulância sai do local, o evento tem de parar. E os contratantes não contratam duas ambulâncias. Surgiu um caso lá (no campeonato da Team Nogueira) em que o atleta foi levado pelos amigos ou colegas. A equipe da ambulância age assim, a não ser que o dono do evento mande levar. Esse tipo de evento tem de ter médico, um clínico geral já basta. Mas só tem enfermeiros. Eles não querem pagar médicos, não querem investir, não botam uma UTI - colocam a de suporte básico, de primeiros socorros. É o que tinha nesse campeonato.
Márcio Miranda, organizador dos campeonatos citados por ZH
As lutas dos que não usam capacete são dos avançados. A gente chama de semi-pro. Alguns ali tinham 10, 12, 15 lutas. Eram jovens, mas com muitas lutas. (...) Do nariz, eu sei estancar sangue. Fratura mesmo é muito difícil acontecer. Se o cara quebrou e tem que ir (pro hospital), leva, paramos o evento. Quem vai avaliar é o médico. Não tem isso aí de que a ambulância é proibida de sair. Num evento amador, não é necessário colocar uma UTI móvel, que é o dobro do preço da básica.